A fibra do caju, normalmente descartada, é utilizada cada vez mais em hambúrgueres, bolinhos e quibes vegetarianos, com tecnologias da Embrapa
…em dois credos se esmoem.
Gabriel Soares de Souza, 1587
O clima influencia a agropecuária e até o futebol. Nunca a Copa do Mundo foi realizada entre novembro e dezembro. As altas temperaturas do verão no Golfo Pérsico levaram a Fifa a decidir pela mudança da data. E o futebol também influencia o clima. A Copa parece ajudar a baixar a temperatura do clima sociopolítico no Brasil. Parece. As principais equipes já jogaram no Catar. No próximo domingo, quem entra em campo é Jesus Cristo. No 27 de novembro começa o Tempo do Advento, do latim Advenire, chegar a. Chegar onde? Ao Natal. Nas casas, no campo e nas cidades é tempo de montar presépios, árvores de Natal, guirlandas, enfeites e muitas luzinhas. Neste ano, em meio ao verde-amarelo da Pátria patriótica e de chuteiras.
No calendário litúrgico, o Tempo do Advento corresponde às quatro semanas antecessoras do Natal. O comércio ganha vida, além de promoções, como a Black Friday, antecipando as compras dos presentes natalinos. Lojas de decorações natalinas surgem nos shoppings. Cidades e casas ganham luzes e o campo começa a colher os plantios da primavera.
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Foto_Reprodução_Shutterstock_Revista Oeste
Muitos chamam estas semanas de tempo do Natal. Com tanta festa é bom não misturar os tempos. Para a Igreja Católica existem dois: o do Advento e o do Natal. O calendário litúrgico começa com o Tempo do Advento em novembro e termina no 24 de dezembro com a comemoração do nascimento de Jesus. O Tempo do Natal vai do 24 dezembro até o primeiro domingo depois da Epifania, em janeiro. Como dizem na Itália: L’Epifania tute le feste a pórta via. Se a Epifania leva embora todas as festas, logo o Carnaval as traz de volta. E, no Brasil, ele já dá seus brados no réveillon de 1° de janeiro.
Em dezembro, o sol caminha cada vez mais para o Sul e para o alto, a menos de um mês do solstício. O banho de luz amadurece as frutas. A colheita da fruticultura antecede a dos grãos. E de uma delas em particular. Quem não conhece ou não gosta de caju?
O nome vem do tupi acayú: a– fruto + ác– que trava + aiú– fibroso ou fruto travoso e fibroso. O pedúnculo, chamado de fruto, é na realidade um pseudofruto, como no caso do morango. Sua cor varia do amarelo ao vermelho. O nome científico do cajueiro (Anacardium occidentale) evoca a forma de um coração invertido do pseudofruto (do grego kardia, coração). E occidentale evoca o Ocidente, as Índias Ocidentais, o Oeste. O cajueiro é o símbolo de Recife. Em tupi, Aracaju significa cajueiro dos papagaios (ará). O maior cajueiro do mundo encontra-se na Praia de Piranji (RN). A árvore recobre 8.500 metros quadrados e produz de 70 a 80 mil cajus/ano (2,5 toneladas).
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Maior cajueiro do mundo, em Piranji, Rio Grande do Norte_Foto_ Reprodução/Idema-RN_Revista Oeste
Típicos do litoral nordestino, os brasileiríssimos cajueiros logo foram identificados pelos povoadores portugueses. Gabriel Soares de Souza (GSS) destaca o caju e os cajuís, os primeiros em sua lista de frutíferas, no Tratado Descritivo do Brasil, de 1587. Um capítulo esplêndido: Daqui por diante se dirá das árvores de fruto, começando nos cajus e cajuís. (…) demos o primeiro lugar e capítulo por si aos cajueiros, pois é uma árvore de muita estima, e há tantos ao longo do mar e na vista dele.
GSS descreve suas qualidades terapêuticas: …são medicinais para doentes de febres, e para quem tem fastio, os quais fazem bom estômago e muitas pessoas lhes tomam o sumo pelas manhãs em jejum, para conservação do estômago, e fazem bom bafo a quem os come pela manhã, (…) e são de tal digestão que em dois credos se esmoem. Uma das primeiras ilustrações do cajueiro é do frade franciscano André Thevet, na obra Singularidades da França Antártica, de 1557.
Voilà (…) nostre Acaïou, auec le pourtrait qui vous est cy deuant representé. Singularitéz de la France Antarctique.
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Primeira ilustração de um cajueiro (1557)_Foto: Reprodução_Revista Oeste
Rapidamente, os portugueses espalharam o cajueiro pelo mundo. Ele chegou às Índias Orientais, em Goa, entre 1560 e 1565. Da Índia, onde se adaptou muito bem, os lusitanos o levaram ao Sudeste Asiático e à África, ainda no século 16.
Seu pseudofruto, pedúnculo carnudo e sumarento, é consumido in natura, dá ótimo suco e pode ser cristalizado ou feito doce em pasta. Fazem-se estes cajus de conserva, que é muito suave, e para se comerem logo cozidos no açúcar cobertos de canela não têm preço (GSS). E compõe excelente batida com cachaça. Ele é a base da cajuína, bebida não alcoólica de cor amarelo-âmbar, típica do Maranhão, do Ceará e do Piauí. Ela foi desenvolvida em 1900 pelo escritor e farmacêutico Rodolfo Marcos Teófilo. Até vinho de caju, os indígenas produziam: Do sumo desta fruta faz o gentio vinho, com que se embebeda, que é de bom cheiro e saboroso (GSS). A fibra do caju, coproduto abundante nas fábricas de suco, normalmente descartada, é utilizada cada vez mais em hambúrgueres, bolinhos e quibes vegetarianos, com tecnologias da Embrapa.
A castanha-de-caju, ótimo aperitivo, é utilizada em doces e pratos, como o vatapá. É para notar que no olho deste pomo tão formoso cria a natureza outra fruta, parda, a que chamamos castanha, que é da feição e tamanho de um rim de cabrito (GSS). As primeiras exportações, no início do século 20, foram da Índia aos Estados Unidos. Hoje, seu mercado mundial movimenta mais de US$ 5 bilhões ao ano, sendo produzido em mais de 40 países.
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Castanha-de-caju _Foto: Shutterstock_Revista Oeste
A área mundial de cajueiros é da ordem de 7,1 milhões de hectares, com maior concentração na África: 56% da castanha-de-caju produzida no mundo. Em área cultivada, o Brasil está na sexta posição, dos quais 99,7% no Nordeste. O Vietnã, sem grandes áreas cultivadas, tem elevada produtividade (1.241 quilos por hectare — kg/ha), lidera as exportações mundiais e processa 1 milhão e 820 mil toneladas, 80% importados da África.
A castanha serve ainda à fabricação de produtos vegetarianos e veganos, como “leites” vegetais, “iogurtes” e até “queijos”, por pequenas e grandes indústrias de alimentos
Os EUA respondem por 20% do consumo mundial; a Europa, 16%; e a China, 9%. A Índia, maior consumidor, com 38%, importa 55% (1 milhão e 550 mil toneladas). O Brasil, preocupa: de quinto maior produtor mundial em 2011, caiu para a 14ª posição em 2016, com 1,5% do total produzido.
Os sistemas de produção do cajueiro precisam evoluir muito em genética e tecnologia. A produção nacional de castanha declinou 2% ao ano entre 2017 e 2021, com uma diminuição de área de 4% ao ano, apesar do aumento anual de 1,3% na produtividade. Produtores e Embrapa sistematizam inovações para a cajucultura ganhar eficiência e produtividade. Com falta de castanha nas indústrias, até São Paulo amplia o plantio do caju nas regiões mais quentes do Estado.
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Queijo de castanha de caju. Foto_Revista Oeste
Na indústria processadora, o índice de quebra de castanhas é alto e gera, com tecnologias de extração adequadas, um óleo comestível de qualidade e elevado valor agregado. A castanha serve ainda à fabricação de produtos vegetarianos e veganos, como “leites” vegetais, “iogurtes” e até “queijos”, por pequenas e grandes indústrias de alimentos.
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Manteiga de castanha de caju. Foto_Revista Oeste
A casca da castanha fornece um óleo industrial, negro e viscoso, o LCC (líquido da castanha-de-caju) e faz parte da química verde. Ele corresponde a cerca de 25% do peso da casca. Formado por ácido anacárdico, cardanol, cardol e 2-metilcardol, é rico em fenóis. Deita essa casca um óleo tão forte que aonde toca na carne faz empola, o qual óleo é da cor de azeite, e tem o cheiro mui forte (GSS). Dada sua composição química, o LCC tem várias aplicações, de larvicida a verniz, até em sensores eletroquímicos. E exige cuidados dos produtores. O azeite que tem na casca (faz) pelar as mãos a quem as quebra. “Queima” e marca as castanhas, desvalorizando-as.
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Leite de castanha de caju. Foto_Revista Oeste
O tronco produz uma resina amarela, a goma do cajueiro, com usos farmacêuticos. Confere proteção tópica e tem ação anti-inflamatória sobre a mucosa do esôfago. Substitui a goma arábica nas cápsulas para comprimidos, com a vantagem de não apresentar açúcares, interessante em medicamentos para diabéticos. Também é usada na indústria alimentar e do papel. Cria-se nestas árvores uma resina muito alva, da qual as mulheres se aproveitam para fazerem alcorce de açúcar em lugar de alquitira (GSS). Alquitira é a goma mucilaginosa do astrágalo (Astracantha gummifera), espessante em loções, geleias, sorvetes etc., substituída aqui pela resina.
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Cajueiro anão-precoce_Foto_Cláudio Norões/Embrapa._Revista Oeste
A casca, comercializada desidratada, é usada em chás como adstringente e tônico. Popular, ela serve para tratar tosse, catarro e fraqueza. É um excelente antisséptico, bactericida e efetiva no tratamento de cáries.
Caju or not caju? Há muita coisa feita de caju. Do erótico Soneto ao Caju de Vinicius de Moraes à Chuva do Caju dos meteorologistas. Até novena católica. A Novena do Caju é cerimônia sensual, cantada e dançada, durante os festejos em louvor a Nossa Senhora da Conceição, no 8 de dezembro, ou a Santa Luzia, no 13. Tambor e pífaro acompanham o canto dos fiéis em frente ao altar da santa, numa casa de família. Ao final, o dono da casa convida todos a beijarem os pés da imagem. Quando terminam, a dança começa. A Novena do Caju ocorre do Pará à Paraíba, associada à frutificação do caju, em pleno Advento. Como se diz no Nordeste: tanta novena e tanto caju… faz lama.
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Cajus expostos em um mercado de Arembepe, Bahia_Foto_Helissa Grundemann_Shutterstock_Revista Oeste
No litoral do Nordeste, a colheita do milho conclui-se em novembro. A Confederação da Agricultura e Pecuária prevê crescimento de 2,8% do Produto Interno Bruto da agropecuária em 2022, em parte pela expansão de milho e trigo. O agro brasileiro é persistente e entra confiante no Tempo do Advento. Seja qual for o clima, o tempo ou a temperatura, o agronegócio seguirá o preceito tão presente nos regimentos reais das naus portuguesas: prepara-te para o pior, espera o melhor e cuida do que vier. Quem planta caju não colhe manga.
Por Evaristo de Miranda, doutor em Ecologia e membro da Academia Nacional de Agricultura da SNA.
Fonte: Revista Oeste