Em entrevista à Revista A Lavoura, Bruno Multedo, sócio fundador da Lets Fly Alimento de Impacto, explica como larvas da mosca-soldado-negra podem ser uma fonte sustentável de proteína e nutrientes para ração animal e até mesmo para a dieta humana
A mosca-soldado vem sendo a aposta de alguns empreendedores, ao redor do mundo, como forma de assegurar uma fonte de proteína e nutrientes segura e sustentável, tanto para a alimentação animal, como para a dieta humana.
Na primeira edição da coluna A Lavoura Entrevista, conversamos com Bruno Multedo, sócio fundador da Lets Fly Alimento de Impacto.
Ele é um desses empreendedores, no Brasil, que tenta trazer para indústria de alimentos uma forma inovadora de alimentar o mundo.
“Nossa visão de longo prazo é o consumo humano e o combate à fome”, afirma Bruno, em entrevista à Revista A Lavoura.
Contexto mundial
Nos próximos vinte anos, seremos 2 bilhões de pessoas a mais no mundo, com a população mundial saltando de 8 para 10 bilhões, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). Esse crescimento até 2050 implica, consequentemente, na necessidade de produzir mais alimentos.
A ONU estima que neste mesmo período deve haver um aumento de 70% a 88% de demanda por proteína animal para alimentação humana, o que poderá causar um grande impacto ambiental com a expansão da pecuária, tal qual conhecemos hoje.
Atualmente, a pecuária, sozinha, ocupa cerca de 75% das terras produtivas do mundo, quando somamos as plantações de soja – principal matéria-prima da ração animal – com as áreas de pastagem.
É sobre este cenário que paira uma grande questão. Como garantir o abastecimento de proteína e evitar a expansão da fome, que hoje atinge 800 milhões de pessoas no planeta, e ao mesmo tempo reduzir a pressão sobre o meio ambiente causada pela pecuária extensiva?
A resposta pode estar, em parte, na mosca. Mais precisamente na larva que nasce a partir dos ovos depositados pela mosca-soldado-negra. O inseto, conhecido pela abreviação BSF, na sigla em inglês de black soldier fly, é cientificamente chamado de Hermetia illucens.
Vantagens da mosca-soldado-negra
Entre os diferenciais da larva da BSF estão a alta concentração proteica, seu rápido crescimento e tamanho – em geral, maior que de outras espécies de moscas -, e seu forte apelo ambiental.
Além de exigirem menos espaço para produção, a mosca consome menor quantidade de água – quando comparada a outras fontes de proteína -, enquanto a larva se alimenta apenas de resíduos orgânicos de comida desperdiçada. O inseto também emite uma quantidade infinitamente menor de carbono.
Entretanto, de acordo com Bruno, uma grande barreira para que os insetos façam parte do prato dos brasileiros é o “nojinho” e a “cara feia”. “A principal barreira é psicológica. É uma questão de tempo, mas conseguiremos transpor essa barreira”, acredita o empresário.
Segundo ele, o mais importante para isso é levar informação às pessoas, e mostrar os aspectos sustentáveis e nutritivos do produto. “Queremos ser uma empresa ativista e atuar na educação e na inspiração de mudanças de comportamento em direção ao consumo mais responsável”, completa.
Produção de alimentos a partir do desperdício
Hoje, a Lets Fly busca registro junto ao Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) para começar a operar uma planta de produção no município de Cachoeiras de Macacu, interior do Rio de Janeiro, com capacidade produtiva para processar uma tonelada de resíduo orgânico por dia – o alimento essencial das larvas.
“Produzimos alimentos a partir do desperdício. Nosso produto envolve qualidade nutricional, inovação, e modelo de negócios circular”.
O passo seguinte será a construção de uma planta com capacidade para processar 40 toneladas de resíduo diariamente.
Questões regulatórias
Tanto a larva, in natura e desidratada, como a farinha de BSF, já possuem registro no Mapa.
A indústria de rações animais é hoje o principal destino da farinha proteica de insetos, com destaque para a alimentação de peixes e pets. O mercado de ração brasileiro é o terceiro maior do mundo, consumindo milhões de toneladas de proteína por ano.
“Na indústria pet, vamos entrar nas rações super premium, hipoalergênicas, que são as rações de maior valor agregado, em que esses produtos competem por qualidade nutricional”, conta Bruno.
Ele ressalta que muitas empresas brasileiras das indústrias de pets e peixes já estavam estudando o produto e conhecem experiências em outros países, como Estados Unidos e da Europa e Ásia.
Ainda assim, é um mercado que está se desenvolvendo no mundo todo, até mesmo em alguns países asiáticos, onde é comum a inclusão de insetos na alimentação humana.
“Mesmo na Ásia, que o mercado está há muito mais tempo, é um modelo muito menos comercial e industrial”, explica Bruno.
Segundo o empresário, apesar de ser um mercado ainda recente, o Brasil já possui legislação relativamente avançada no que refere aos aspectos regulatórios para insetos.
“Já são aprovadas fontes de insetos para alimentação animal, com exceção de ruminantes por conta da doença da vaca louca, que não podem se alimentar de qualquer fonte de origem animal”, explica.
Cientificamente, a transmissão de vaca louca, via insetos, não é comprovada.
“Pretendemos rodar alguns experimentos com ruminantes para termos essa base científica para que a gente consiga fazer um movimento legislativo na tentativa de flexibilizar a norma”, explica .
Para ele, esse seria um movimento estratégico até para os produtores de gado sofrerem menos pressão do mercado, ao adotarem uma fonte de alimento mais circular e sustentável.
“Nos próximos cinco anos, isso será um fator determinante: sustentabilidade do processo. A empresa, seja ela da pecuária ou de ração animal, que já está pressionada, será ainda mais pressionada pelos seus consumidores, por agentes regulatórios e investidores, para serem mais responsáveis ambientalmente e socialmente”, pontua Bruno.
Qualidades nutricionais da farinha
Muito além da qualidade proteica, a farinha possui outros atributos nutricionais. Além da cadeia de aminoácidos e ácidos graxos completa, a BSF também é rica em Cálcio, Fósforo, Ácido Láurico, Ômega 3 e Quitina, nutrientes necessários para a saúde animal mais ampla.
“Temos a ideia de classificar a nossa farinha como outro produto. Hoje ela está classificada como farinha de proteína, o que a acaba se comparando com outras farinhas proteicas, quando, na realidade, a farinha de BSF vai muito além da farinha de proteína”, destaca Bruno.
“Tem diversos outros nutrientes, ela é, muito mais, um complexo nutricional. Estamos estudando a ideia de registrar como um complexo nutricional, um aditivo, na busca por uma comparação mais justa e, consequentemente, uma precificação mais interessante”, explica.
Alguns experimentos já realizados identificaram uma função positiva no sistema imunológico dos animais que se alimentam dessa farinha de BSF. “Em geral, são animais que crescem mais saudáveis e mais rapidamente”, ressalta.
As pesquisas apontam para uma melhor formação da membrana celular, articulações, e fortalecimento do sistema imunológico e regulação do metabolismo.
“Esse complexo nutricional faz com que a indústria de ração tenha que comprar menos desses insumos em outros lugares porque ele já está presente”, analisa Bruno.
Como começa a produção
A produção da farinha começa antes mesmo das moscas entrarem em ação. No preparo da dieta das larvas.
De acordo com o empresário, toda a alimentação das larvas é feita à base de resíduos orgânicos. “São utilizados restos de comida e alimentos descartados, que seriam destinados a lixões e aterros sanitários”.
“Hoje, esse é um enorme problema para o meio ambiente, uma vez que são desperdiçadas 1,5 bilhão de toneladas de alimento anualmente, causando um enorme passivo ambiental”, frisa.
Ao invés disso, esse “lixo” é levado para a Vide Verde, empresa parceira da Lets Fly, que trabalha com a compostagem de resíduos, para transformá-los em um substrato que alimentará as larvas.
Apesar delas poderem se alimentar diretamente do resíduo orgânico bruto, Bruno explica que é importante, no caso de uma produção industrial, padronizar e melhorar o resíduo antes.
“Transformamos esse resíduo orgânico bruto em um substrato, que é o resíduo orgânico triturado em partículas, bem pequenas e homogêneas, e em uma consistência ideal para aumentar a velocidade e eficiência de digestibilidade pelas larvas”, detalha.
Para trazer ainda mais padrão ao processo, ele conta que são adicionadas ao substrato algumas bactérias que agilizam o processo de digestão. “Assim, vamos garantir que em “X” dias as larvas vão se alimentar e crescer num determinado tamanho”, afirma o sócio da Lets Fly Alimento de Impacto.
A cada dez toneladas de resíduo orgânico é possível produzir uma tonelada de proteína seca.
Ciclo produtivo
Preparado o substrato, é hora de partir para a produção da colônia de moscas-soldado. “Um dos maiores desafios da produção é a manutenção da colônia. Isto é, conseguir manter de maneira consistente a produção de ovos”, ressalta Bruno.
Ele explica que as moscas-soldado são umas das espécies que se reproduzem mais rapidamente na natureza.
Em um ambiente controlado, centenas de BSFs fêmeas depositam milhares de ovos diariamente. Uma mosca-soldado adulta pode colocar até mil ovos, que eclodem em aproximadamente 4 dias., gerando até 22 mil novas larvas.
“Elas precisam de um ambiente bastante úmido (90% a 95% de umidade), com ventilação e exposição a luz para que acasalem”, conta Bruno.
Nesse momento é que entra o substrato preparado. Logo depois da eclosão, as larvas começam a se alimentar vorazmente. É quando começa o processo de engorda, que vai durar pelos próximos dez dias.
Bruno ensina que, “ao longo desse tempo, as larvas crescem cinco mil vezes seu tamanho original”.
Ele explica que, após esse período, há a etapa de abate das larvas, em que 90% delas são abatidas para fabricação da farinha. “Os outros 10% seguem para terminar o ciclo de vida normal, onde se tornarão novas moscas, que vão se reproduzir e depositar novos ovos e retroalimentar toda a cadeia”.
Após a engorda, a larva vira uma pré-pupa até chegar a ser uma pupa, que é quando acontece a metamorfose. Essa etapa dura entre dez e quinze dias, e a fase da mosca pode levar outros quinze dias.
Óleo cosmético
Apesar da farinha proteica ser hoje o principal foco da Lets Fly, o processo produtivo das moscas-soldado acaba gerando outros subprodutos. Um deles é o óleo.
“A larva é, basicamente, proteína e óleo”, define o empresário. Ela é composta de 40 a 60% de proteína e de 20% a 40% de óleo, além de minerais.
Bruno explica que, quando se processa a larva para produção da farinha, essa farinha pode conter o óleo, como também pode ser desengordurada. No segundo caso, há uma separação do óleo.
“É comparável ao óleo de coco, com uma alta concentração de ácido láurico, que é um ácido graxo, com propriedades antioxidantes e antimicrobianas, além de um poderoso hidratante, com ômega 3, 6 e 9”.
As indústrias que consomem óleo de BSF são as de cosméticos e alimentos, tanto para humanos como para animais.
Composto bioestimulante
Outro subproduto é conhecido como Frass. “É um composto do que restou dos resíduos orgânicos consumidos pelas larvas, mais o excremento e o exoesqueleto do inseto”, explica Bruno.
“Durante a fase de engorda, a larva vai trocando de pele. Essa pele é o exoesqueleto que ela vai deixando para trás, que possui uma função importante no frass, porque melhora a qualidade do produto”, salienta o fundador da Lets Fly Alimento de Impacto.
Este composto pode ser utilizado como adubo em plantações. Algumas pesquisas também comprovam a sua eficácia como bioestimulante e biodefensivo.
De acordo com o empresário, “as plantas interpretam a presença do exoesqueleto como um invasor e, assim, são bioestimuladas a serem mais saudáveis e robustas para se defenderem desse pseudo invasor”.
Parcerias com institutos de pesquisa
Para colocar no mercado todos esses produtos, com maior adesão e credibilidade junto aos consumidores, a empresa vem investindo em parcerias com diversos institutos de pesquisa.
A principal parceria é com a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), com quem desenvolve pesquisas nas áreas de Engenharia química, Engenharia de Alimentos, Zootecnia e Engenharia de Produção. “São cinco frentes de trabalho”, enumera Bruno.
Ele esclarece que “uma é para desenvolvimento dos produtos proteicos e desenvolvimento das farinhas, outra frente é voltada para o óleo, uma terceira está focada na dieta das larvas, para maior eficiência e produtividade, uma quarta é direcionada para o design operacional da nossa planta, equipamentos e construção desse design interno, e, finalmente, a quinta frente é canalizada para experimento e análises do frass”.
Além da UFRRJ, a empresa também possui parcerias com o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), a Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais, e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), com quem estão desenvolvendo pesquisas sobre a alimentação de tilápias com a farinha de BSF.
“Nossa ideia é ter essa relação simbiótica com a academia, com a ciência. Faz parte do nosso modelo de negócio, e agregamos muito valor com essa apreciação, e para eles também, uma vez que podem colocar o conhecimento teórico deles na prática”.