Componente do subproduto lácteo, o peptídeo tem potencial para minimizar os efeitos adversos da hipertensão, doença que atinge mais de um bilhão de pessoas em todo o mundo
Por muito tempo, o soro de leite, um subproduto agroindustrial que resulta da fabricação de queijos e derivados, vem sendo considerado pelo mercado produtor e consumidor um “vilão” da dieta alimentar do ser humano, principalmente por causa da gordura. Mas um estudo feito pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), prova o contrário.
Ao analisar pequenas partes de proteína (peptídeo), pesquisadores identificaram este componente, que tem potencial para minimizar os efeitos adversos da hipertensão, uma doença que atinge mais de um bilhão de pessoas em todo o mundo. Testes in vitro indicaram vasodilatação nas artérias das cobaias entre 80% e 100%.
“Este resultado é um indício bastante promissor da capacidade anti-hipertensiva de peptídeos do soro de leite, com efeito bastante similar àquele obtido com medicamentos”, relata o professor José Eduardo da Silva Santos, do Laboratório de Farmacologia Cardiovascular da UFSC, responsável pela realização das análises de atividade biológica.
Diferencial
Ele explica que o diferencial desta pesquisa é o processo tecnológico de preparo e fracionamento do soro de leite, desenvolvido na Embrapa, que gerou um ingrediente de alto valor agregado a produtos e pode vir a ser utilizado como auxiliar no controle da hipertensão. Seu estudo analisou o efeito em aorta de cobaias, e agora deve avançar para outras análises, inclusive com humanos. “A ideia é conhecer melhor os mecanismos da atividade anti-hipertensiva para validar o modelo em doentes com um grau de segurança no uso da substância”, revela Santos.
Para alcançar este índice de relaxamento das artérias, os pesquisadores testaram mais de dez amostras até chegar a uma composição ideal. “Na pesquisa realizada, validamos 25 peptídeos, dentre os quais cinco com características similares, ainda não mencionados na literatura. Tais descobertas proporcionarão um aumento no interesse industrial, que poderá incorporar o soro, ou frações dele, a diversos produtos alimentícios ou nutracêuticos”, conta Luísa Rosa, mestranda do Programa de Ciências de Alimentos da UFRJ, que realizou o trabalho sob a orientação das pesquisadoras Lourdes Cabral e Caroline Mellinger, da Embrapa Agroindústria de Alimentos (RJ).
Atualmente, Caroline é líder de dois projetos de pesquisa que buscam desenvolver ingredientes biologicamente ativos do soro de leite, financiados pela Embrapa e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).
Processos
Na pesquisa realizada, o soro de leite foi concentrado por ultrafiltração e suas proteínas foram parcialmente hidrolisadas, quebradas em moléculas menores, conhecidas como peptídeos. Após a passagem destas pequenas partículas de proteína, pelo processo de fracionamento por membranas, para separação dos peptídeos, foi feita uma simulação do processo digestivo para que fossem avaliadas as alterações químicas e biológicas do trato gastrointestinal humano.
Estes peptídeos gerados e fracionados foram, então, secados por atomização para a obtenção de um produto em pó, que já pode ser considerado um novo ingrediente a ser incorporado pela indústria alimentícia, nutracêutica ou farmacêutica.
“Cientificamente, o soro de leite vem sendo amplamente estudado, assim como, as possíveis propriedades funcionais de suas proteínas parcialmente hidrolisadas (peptídeos), e suas ações sobre o sistema cardiovascular, nervoso e imunológico”, relata Caroline.
A especialista trabalhou em conjunto na caracterização dos peptídeos com os pesquisadores Carlos Bloch Junior e Luciano Paulino, da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia (DF). “Com esta pesquisa, conseguimos identificar um conjunto de peptídeos anti-hipertensivos, que nos impulsiona a continuar realizando mais testes de comprovação da eficácia do produto”, informa a pesquisadora.
Alimentos funcionais
A par das comprovações dos benefícios do novo ingrediente para a saúde e de seu potencial de utilização na indústria alimentícia, ainda resta à equipe de pesquisadores um desafio tecnológico: retirar o amargor resultante dos peptídeos liberados na hidrólise do soro de leite.
Para avaliar a aceitação do consumidor deste ingrediente, em formulações alimentícias, as pesquisadoras realizaram uma análise sensorial do produto em pó adicionado a uma sobremesa láctea comercial, sabor chocolate branco. O teste foi realizado no Laboratório de Análise Sensorial e Instrumental da Embrapa Agroindústria de Alimentos, sob a orientação da pesquisadora Rosires Deliza.
Provadores
Cem provadores participaram do teste, quando foram oferecidas duas amostras sem identificação e de forma aleatória: uma com e outra sem o ingrediente funcional. Dentre os provadores registrados, 81 atribuíram notas maiores que sete à sobremesa adicionada de peptídeos e 78% relataram que certamente a comprariam. Em relação à sobremesa comum, apenas 71 pessoas atribuíram nota maior que sete e 66% delas a compraria.
A preferência do consumidor, portanto, foi maior por aquela sobremesa com ingrediente funcional, sem que o sabor interferisse em sua escolha. “Pretendemos continuar testando este ingrediente em outros produtos alimentícios. Vamos agora trabalhar no desenvolvimento de um produto salgado, com baixo teor de sódio”, relata Luísa Rosa, bolsista da Embrapa Agroindústria de Alimentos e doutoranda do Programa de Ciências de Alimentos da UFRJ.
Impacto ambiental
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IB GE) mostram que a cadeia produtiva do leite no Brasil cresceu mais de 30% na última década, alcançando 34 bilhões de produção de litros de leite em 2013. O incremento do setor é de aproximadamente 5% ao ano, sendo que a maior parte deste volume é canalizada para produção de mais de 600 mil toneladas de diversos tipos de queijo por ano.
O volume de soro gerado com a produção de queijo depende do tipo do laticínio. Em média, cada quilo de queijo gera oito litros de soro, o que significa uma produção anual de mais de quatro bilhões de litros deste subproduto, no Brasil. Anualmente, estima-se que metade deste montante seja descartado no meio ambiente, o que representa mais de dois bilhões de litros.
“Este dado é alarmante, não só pelas perdas comerciais e de geração de renda ao setor produtivo, mas também pela forma de descarte inadequado, como efluentes não tratados. Isto acaba gerando alta taxa de contaminação orgânica na água e resulta em grande problema ambiental”, critica a pesquisadora Caroline Mellinger.
Aproveitamento
Mesmo mantendo grande produção de soro de leite, hoje, o Brasil é um dos maiores importadores mundiais do produto em pó. “Os pequenos laticínios, principalmente, não possuem volume e padrão para aproveitar o potencial do soro de leite resultante da produção de queijos e derivados. Acabam desperdiçando ou subutilizando um produto de alto valor nutricional e comercial”, conta o pesquisador Amauri Rosenthal, pesquisador da Embrapa Agroindústria de Alimentos.
A preocupação com a sustentabilidade ambiental, aliada ao interesse de aumentar a competitividade do setor lácteo, levou uma equipe de pesquisadores da Embrapa a desenvolver um projeto para incremento da capacidade de competição das cooperativas da cadeia leiteira nos Estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais.
O foco do trabalho está nas inovações tecnológicas e melhorias do processo, incluindo o aproveitamento de soro de leite de pequenas queijarias, a fim de definir alternativas de processamento e desenvolvimento de novos produtos, a partir deste coproduto. “Estamos desenvolvendo um modelo logístico de decisão de investimentos, que leva em consideração diferentes parâmetros, como distância e custo de transporte, qualidade do soro de leite, custos de investimento e escalas mínimas de produção”, conta Rosenthal, líder do projeto. A equipe também trabalha no desenvolvimento de bebidas à base de soro de leite adicionadas ao suco de frutas.
Este projeto é financiado pela Agência Australiana para o Desenvolvimento Internacional (Ausaid), pela Faperj e pela Embrapa. Em cooperação com a Austrália, o projeto consolida uma parceria com a Commonwealth Scientific and Industrial Research Organization (CSIRO). Além de Austrália e Brasil, esse projeto também agrega parceiros da Argentina, Colômbia e Uruguai.
O modelo logístico brasileiro, inspirado na experiência australiana, identificará a localização ideal de possíveis unidades de concentração, aqui no País, para secagem de soro de leite, considerando as unidades já existentes nas plantas industriais, com capacidade ociosa.
Exemplo de fora
Na Austrália, o aproveitamento do soro de leite na indústria alimentícia chega a quase 100%, ou seja, praticamente não há desperdício nem prejuízo para o meio ambiente, segundo o pesquisador da Embrapa. “A ideia é seguirmos por este mesmo caminho no Brasil”, prevê Rosenthal.
O soro de leite, como suplemento alimentar, é legislado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no Brasil. É um subproduto da cadeia de laticínios, rico em água, lactose, sais minerais e proteínas. De alto valor nutricional, vem sendo comercializado em líquido ou em pó e apresenta grande aceitação pelos consumidores, especialmente pelos praticantes de esportes em academias, conhecido como whey protein. É utilizado, principalmente, na fabricação de bebidas lácteas, iogurtes, queijos, formulações infantis e bebidas para atletas, podendo conter teores de proteínas de 8% à 98%, dependendo do produto.