Especialista esclarece aspectos complementares e técnicos sobre as uvas brasileiras e sua qualidade atestada cientificamente.
Um levantamento conjunto do Instituto Federal do Sertão Pernambucano (IF Sertão PE), da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Embrapa apontou a riqueza dos compostos presentes no suco de uva integral brasileiro, a partir de variedades criadas pela última. O estudo identificou substâncias conhecidas como fenólicos bioacessíveis, fitoquímicos ou nutracêuticos. Sua principal característica é a alta capacidade de absorção pelo corpo durante as sucessivas etapas de digestão, simuladas em laboratório para fornecer uma visão mais clara e precisa de como se dá a sua interação com o organismo.
Entre os diversos benefícios observados, estão o fortalecimento do sistema imunológico, prevenção de obesidade e diabetes, além do combate a doenças cardíacas e neurodegenerativas. O suco extraído da uva conhecida como BRS Carmen se destacou pelo teor de fenólicos bioacessíveis, servindo de indicador para que variedades dessa matriz sejam mais exploradas em estudos futuros. Cada uma dessas, no entanto, é entendida como única e complexa pelos pesquisadores.
A região do Vale do Submédio São Francisco é, atualmente, um polo produtor do suco integral de uva, sobretudo a partir das variedades adaptadas ao clima tropical semiárido. O volume anual estimado é de 35 milhões de litros, contabilizados também os sucos concentrados. Isso ilustra o sucesso da expansão do cultivo, antes mais restritas ao Sul do País. Com a chegada ao Sudeste, Centro – Oeste e Nordeste, novas fronteiras foram desbravadas e foi preciso lidar com temperaturas e radiação solar mais altas.
Nesse sentido, a atuação da Embrapa foi determinante, uma vez que as novas variedades introduzidas lograram êxito em biomas teoricamente adversos. O programa Uva e Vinho da entidade, criado em 1985, deu mais competitividade aos produtores que puderam atuar em áreas maiores, de climas diferentes, mas aprimorando a qualidade. Para além das mudanças genéticas, houve também orientações quanto ao manejo, combate a pragas e doenças e sustentabilidade. Os avanços, após décadas de esforço conjunto, tornaram-se palpável ao longo da cadeia produtiva, alavancando o consumo consideravelmente.
Além da BRS Carmen, foram avaliadas no estudo a BRS Magna, BRS Violeta e BRS Cora. Para melhor entender as nuances desses resultados, a SNA conversou com Dra. Aline Biasoto, pesquisadora da Embrapa Meio Ambiente. Aline possui graduação em Ciência dos Alimentos pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo – ESALQ/USP (2005). Mestrado e Doutorado em Alimentos e Nutrição, área de concentração Consumo e Qualidade de Alimentos, pela Faculdade de Engenharia de Alimentos da UNICAMP.
Na entrevista, foram abordadas as perspectivas que o sucesso das uvas brasileiras lança sobre o futuro de outras culturas e o papel fundamental da Embrapa na pesquisa e aplicação de tecnologias agrícolas revolucionárias.
A seguir, a íntegra da conversa.
SNA – Qual o conceito central de bioacessibilidade, e que impacto ele teve nos critérios de avaliação que atestou a qualidade das uvas e sucos integrais brasileiros?
Aline – O termo “bioacessibilidade” alude à proporção de um nutriente ou elemento bioativo, como compostos fenólicos, vitamina C e carotenoides, que é absorvida e torna-se disponível para utilização pelo organismo após a ingestão de determinado alimento. Isso equivale à parcela que é absorvida no sistema gastrointestinal e que, assim, pode exercer efeitos biológicos no corpo humano. Quando se fala em compostos fenólicos, a avaliação de sua bioacessibilidade é frequentemente feita por meio de sistemas de digestão in vitro. Essa abordagem se justifica pelas complexidades envolvidas nos estudos in vivo, que são dificultadas pelas mudanças significativas na estrutura desses compostos ao passarem pelo sistema gastrointestinal. Modelos experimentais que mimetizam o processo de digestão gastrointestinal têm o propósito de elucidar os efeitos benéficos de compostos bioativos presentes em alimentos e bebidas. Nos estudos que conduzimos, por exemplo, a bioacessibilidade dos compostos fenólicos encontrados no suco de uva brasileiro demonstrou variações. Essas diferenças foram observadas não apenas em função da variedade da uva empregada, mas também em relação à composição específica do produto, particularmente no que tange aos níveis de açúcares e ácidos orgânicos. Após simular a digestão da amostra pelas fases da boca, estômago e intestino, o método da diálise foi aplicado para simular como esses compostos atravessam a barreira intestinal.
SNA – Os compostos fenólicos, mencionados no estudo, trazem inúmeros benefícios à saúde, prevenindo doenças e fortalecendo o organismo. Qual o desafio de simular os efeitos que o suco acarreta ao corpo, mediante um trabalho laboratorial?
Aline: Na pesquisa realizada, a simulação da digestão gastrointestinal seguiu o protocolo INFOGEST, que é um padrão bem estabelecido e validado pela literatura científica. A utilização deste protocolo confere credibilidade e comparabilidade aos resultados, fundamentando ainda mais as conclusões do estudo. Para avaliar a bioacessibilidade dos compostos fenólicos — o quão disponíveis estes compostos ficam para serem absorvidos pelo organismo após a digestão — foi empregada a técnica de cromatografia líquida. Esse método de análise permite uma identificação e quantificação rigorosas dos compostos em questão após seu trânsito pelo sistema gastrointestinal. Complementando essa avaliação, a capacidade antioxidante desses compostos foi também examinada. O estudo empregou três métodos diferentes de avaliação in vitro, ampliando a robustez e a abrangência dos resultados. Dessa forma, o estudo adota uma abordagem metodológica rigorosa e multidimensional. A combinação do protocolo INFOGEST com técnicas analíticas avançadas permite uma avaliação abrangente e precisa tanto da bioacessibilidade quanto do potencial bioativo dos compostos fenólicos. Este conjunto de métodos convergentes serve para alicerçar pesquisas futuras e aplicativos práticos na área de nutrição e saúde.
SNA – As variedades de uvas mencionadas no estudo possibilitaram seu cultivo em solos e climas inicialmente adversos. Quais culturas podem se beneficiar, em larga escala, dessa metodologia?
Aline – As variedades de uva objeto deste estudo — BRS Carmem, BRS Magna, BRS Cora e BRS Violeta — são frutos do Programa de Melhoramento Genético da Embrapa, situado em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul. Essas cultivares foram desenvolvidas especificamente para a produção de suco de uva e vinhos. Há também a Isabel Precoce, que, embora não tenha sido desenvolvida pela Embrapa, passou por melhorias que encurtaram seu ciclo produtivo. No âmbito do Vale do Submédio São Francisco, região que abrange municípios como Petrolina-PE e Juazeiro-BA, essas variedades de uva se mostraram particularmente ricas em compostos fenólicos. O fenômeno é atribuído a fatores climáticos da região, como alta incidência de radiação solar e temperaturas elevadas. Essas condições geram um maior estresse nas videiras, o que leva à produção aumentada de metabólitos secundários, incluindo os compostos fenólicos. Entretanto, vale destacar que essas variedades de uva não são exclusivas da região nordestina e estão disseminadas em outras partes do Brasil. Elas são igualmente empregadas na produção de suco de uva e vinhos em diferentes contextos climáticos e geográficos, o que amplia a relevância do estudo. A pesquisa é especialmente valiosa para entender como as condições ambientais afetam a composição química das uvas e, consequentemente, a qualidade nutricional dos produtos derivados. Essas informações são cruciais não apenas para produtores e consumidores, mas também para orientar futuras iniciativas de melhoramento genético e práticas agrícolas sustentáveis.
SNA – Delegações estrangeiras costumam manifestar admiração e perplexidade com o grau de avanço atingido pela Embrapa em termos de pesquisa e tecnologia. Nos 50 anos da entidade, que desafios considera essenciais superar para manter esse case de sucesso na agricultura mundial?
Aline – A liderança da Embrapa, agora sob o comando de Silvia Massruhá — a primeira mulher a assumir a presidência da empresa —, está sinalizando os rumos que a pesquisa agropecuária deve tomar para manter sua vanguarda científica. Segundo Massruhá, o futuro da pesquisa se situa na intersecção de sistemas integrados e tecnologias conservacionistas, aliados às ciências digitais e transversais. Esse é o eixo em torno do qual girará a próxima revolução sustentável no setor. Esse direcionamento não apenas mantém o protagonismo que a Embrapa já tem na agricultura tropical e na segurança alimentar, mas também sinaliza uma abordagem abrangente. Ela prevê que essas inovações serão a chave para enfrentar os desafios emergentes relativos às mudanças climáticas e à inclusão produtiva. Em outras palavras, a agenda proposta por Silvia Massruhá transcende a produção de alimentos e se estende a soluções para problemas sociais e ambientais do presente e do futuro. Nesse contexto, a pesquisa e a inovação tornam-se instrumentos cruciais para o desenvolvimento de práticas mais sustentáveis, que considerem o equilíbrio ecológico e a equidade social. E é justamente neste ponto que deve residir o foco de nossa atenção e nossos esforços: criar um sistema agropecuário que seja não apenas produtivo, mas também sustentável e inclusivo. Esse pensamento alinha-se com os desafios globais contemporâneos e coloca a Embrapa e suas iniciativas em um lugar de destaque não só no Brasil, mas no cenário mundial.