Transplante de órgãos de suínos para humanos e terapia para tumores cerebrais em crianças beneficiarão pacientes com doenças graves
Biólogos brasileiros estão utilizando técnicas de edição do DNA, como o Conjunto de Repetições Palindrômicas Curtas Regularmente Espaçadas (Crispr) e DNA recombinante, para o desenvolvimento de tecnologias de ponta com aplicação prática na saúde e outras áreas. Nesse sentido, duas pesquisas em Biotecnologia originadas na Universidade de São Paulo (USP) caminham para o desenvolvimento de procedimentos e drogas que poderão beneficiar pacientes com doenças graves.
O Programa de Xenotransplante, do Centro de Estudos do Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL) da USP, tem como objetivo permitir que órgãos de suínos geneticamente modificados venham a ser transplantados para humanos. O outro estudo, em desenvolvimento pela startup Vyro, fundada por cientistas da USP, prevê a produção de uma droga – a partir do vírus zika brasileiro modificado – contra tumores cancerígenos do sistema nervoso central, principalmente de pacientes infantis.

Pesquisas utilizaram a ferramenta Crispr (em inglês, Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats), além de técnicas já conhecidas, como a do DNA recombinante. Foto: CRBio-01/Divulgação
A técnica
A ferramenta Crispr (em inglês, Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats) foi desenvolvida pela cientista francesa Emmanuelle Charpentier e pela norte-americana Jennifer Doudna. O Crispr somou-se a outras técnicas já conhecidas de edição, como a do DNA recombinante, ampliando as possibilidades do que no passado era conhecido como “engenharia genética”: a modificação do DNA, o ácido desoxirribonucleico, que armazena a informação genética dos seres vivos.
Segundo Mayana Zatz, bióloga diretora do CEGH-CEL, os pesquisadores do laboratório utilizam a técnica de Crispr no Programa de Xenotransplante, termo que se refere a transplantes de órgãos entre espécies diferentes.
“No fim do ano passado e início desse ano, foram feitos dois transplantes de rins de suínos, nos EUA, em pessoas em morte cerebral. E se viu que o rim funcionou por cerca de três dias”, relatou Mayana Zatz, em entrevista para a revista O Biólogo, do Conselho Regional de Biologia (CRBio-01). “Depois realizado um transplante cardíaco usando o coração de um suíno num paciente vivo, que estava em fase terminal, ligado a aparelhos.”
O transplantado conseguiu sobreviver por 60 dias com o coração de um suíno geneticamente modificado. O resultado foi considerado muito positivo, quando comparado à sobrevida de só 18 dias do paciente do primeiro transplante de coração (de humano para humano) em 1967.

O Programa de Xenotransplante tem como objetivo permitir que órgãos de suínos geneticamente modificados venham a ser transplantados para humanos. Foto: Reprodução
Por meio da técnica de Crispr, os pesquisadores do CEGH-CEL silenciaram os genes dos suínos que provocam rejeição aguda de órgãos transplantados para humanos. Eles já conseguiram criar embriões de suínos com esses genes silenciados, que estão armazenados no laboratório. O próximo passo, segundo a bióloga, será inserir esses embriões em barrigas de aluguel, no útero de porcas. Mas antes será necessário construir biotérios de porcos com estrito nível de segurança contra infecções, as chamadas pig facilities. A previsão é que os experimentos de inseminação das porcas aconteçam a partir de 2024.
Se bem-sucedida, a pesquisa permitirá a realização de transplantes de rim, coração, pele, córnea e talvez fígado de suínos para humanos, mitigando – ou mesmo resolvendo – o principal gargalo para os procedimentos, que é a falta de órgãos disponíveis para doação. No Brasil, o CEGH-CEL é o único com pesquisas avançadas com xenotransplante. No mundo, centros nos EUA, China, Alemanha e Nova Zelândia estão trabalhando com a tecnologia.
Vírus zika
Mayana Zatz, o professor Oswaldo Keith Okamoto, do IB/USP, e Carolini Kaid Davila, todos biólogos, descobriram que o vírus zika brasileiro pode ser usado como ferramenta no tratamento de tumores agressivos do sistema nervoso central. O estudo foi publicado em abril de 2018 na revista Cancer Research, da American Association for Cancer Research, que dedicou a capa da edição à descoberta.
Na pesquisa, que fez parte do doutorado de Carolini no IB/USP, foram inseridas células humanas tumorais nos cérebros de camundongos. Em seguida, injetou-se uma dose única de vírus zika nos cérebros com tumor. Três semanas depois, os vírus provocaram a remissão total dos tumores, inclusive de outros órgãos metastáticos.
No pós-doc, em 2020, no CEGH-CEL, Carolini e equipe continuaram a pesquisa em cachorros que já tinham tumores no sistema nervoso central. Eles injetaram vírus zika na nuca (intratecal) dos animais e o resultado foi a redução em até 5 cm dos tumores e a melhora clínica dos cães, que voltaram a fazer atividades rotineiras, como comer sozinho, levantar a cabeça e responder aos tutores.
A pesquisa também reafirmou a segurança da terapia. Os cachorros não ficaram doentes com zika, confirmando o resultado observado nos camundongos, que também não apresentaram o vírus na corrente sanguínea. Além disso, os cães não tiveram qualquer efeito colateral do tratamento. O estudo foi publicado na revista Molecular Therapy em maio de 2020.

Pesquisa injetou vírus zika em cachorros com tumores no sistema nervoso central e constatou redução em até 5 cm dos tumores, além de melhora clínica dos cães. Foto: Divulgação_A Lavoura
Com resultados, os cientistas decidiram abrir uma empresa para o desenvolvimento de uma droga para tratamento de tumores do sistema nervoso central em pessoas, particularmente em pacientes infantis. A startup Vyro foi criada em fevereiro de 2021 e está incubada no Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia (Cietec) da USP/Ipen, no campus da USP, que abriga dezenas de startups de Biotecnologia e outras áreas.
A empresa encomendou junto a um fornecedor local uma sequência genética (genoma) do zika vírus brasileiro, colocada na forma de um anel dentro de um plasmídeo. Por meio da técnica de DNA recombinante, Carolini e equipe recortaram a sequência por engenharia genética, modificando o genoma do vírus. Com o DNA geneticamente modificado no plasmídeo, a equipe gerou o RNA do vírus zika sintético.
“O RNA replicou e produziu vírus zika ativo modificado e 100% sintético. Nossos testes em células in vitro demonstraram que esse vírus zika sintético é incapaz de infectar células normais, como neurônios. Ele só infecta, e destrói, as células de tumores do sistema nervoso central”, disse Carolini para a revista O Biólogo.
A droga em desenvolvimento se enquadra na categoria de “vírus oncolítico”, modificados em laboratório, que atuam sobre células cancerígenas sem afetar células saudáveis. Os testes na fase pré-clínica, em camundongos, estão confirmando a eficácia e segurança do tratamento, segundo Carolini. Ela acredita que, em alguns anos, a empresa produzirá uma droga para tratamento de câncer de cérebro em geral, em particular de tumores agressivos em pacientes infantis.