Recentes acontecimentos no Brasil despertaram a atenção dos cidadãos e consumidores sobre bem-estar animal e abate humanitário. Mas o que isso significa?
O cenário é doloroso. Animais amontoados em gaiolas de metal, praticamente incapazes de moverem-se, ocupam, cada um, espaço com tamanho inferior ao de uma folha de papel. Essa é a realidade de 95% das galinhas poedeiras no Brasil, algo em torno de cem milhões de animais. Elas passam a vida inteira confinadas, ou até dois anos, neste sistema denominado “gaiolas em bateria”. Muitas delas, nunca vêem a luz do sol.
Neste sistema de confinamento, sequer podem esticar as asas ou realizar qualquer outro comportamento natural de uma galinha, como ciscar, tomar “banho de areia”, construir e colocar ovos em ninhos. Já nos primeiros dias de vida, algumas têm a extremidade dos bicos cortados por uma lâmina quente, sem qualquer anestesia. É uma forma de prevenir possíveis surtos de arranque de penas. Aliás, o estresse psicológico é apenas uma das consequências do confinamento intensivo. Lesões físicas, perda de peso, doenças e fraturas ósseas são comuns nestes animais.
A vida dos suínos
A situação dos suínos de produção é igualmente aflitiva. Ainda leitões, suas caudas são cortadas, também sem anestesia, para evitar o comportamento anormal de mordida da cauda. Este comportamento nada mais é que um sintoma de estresse, pois não podem fuçar ou cavar o solo, como fazem os porcos cerca de 50% do dia. Leitões, em sistemas industriais, também podem ter seus dentes cortados. Entretanto, o procedimento é doloroso, e, muitas vezes, pode gerar complicações, como infecções e sangramentos.
Outra prática comum é o confinamento de matrizes suínas, porcas prenhes, em gaiolas de gestação. Estas gaiolas têm praticamente o tamanho do corpo dos animais, impedindo que eles sequer possam se virar dentro delas. As porcas, geralmente, são confinadas nestas gaiolas durante toda a gestação. Depois, são transferidas para as gaiolas de parição, e após o parto, re-inseminadas e alojadas novamente em gaiolas de gestação. “Isso acontece durante todas suas vidas, prenhez após prenhez, resultando em anos de imobilidade praticamente total”, afirma Carolina Galvani, gerente sênior de Campanhas de Animais de Produção da Humane Society International-HSI.
Proteção dos animais
Galvani é quem nos traz o relato dessas práticas intoleráveis. Ela é responsável da HSI no Brasil, pela divulgação de métodos alternativos de produção de animais, que respeitem o bem-estar. A HSI é uma das maiores organizações na luta pela proteção animal do mundo. No Brasil, a entidade trabalha com alguns programas, entre eles, a eliminação de práticas de confinamento intensivo de animais de produção, e o fim dos testes em animais para a elaboração de cosméticos.
Com o processo de industrialização e desenvolvimento da agropecuária, a cadeia produtiva sofreu enormes mudanças ao longo dos anos. O resultado: apenas aspectos quantitativos dos animais passaram a receber a atenção dos produtores. Com isso, este modelo de criação atual, muitas vezes, é responsável pela causa de dor, medo, sofrimento, e até mesmo hematomas e fraturas, como já exposto, lamenta a gerente da HSI.
“Felizmente, alternativas mais humanitárias às gaiolas já existem no Brasil, como a produção denominada free-range (ao ar livre)”, afirma Galvani. “As galinhas chamadas ‘caipira’ ou ‘orgânica’, por exemplo, têm acesso a áreas externas, podem se exercitar, usar poleiros, colocar ovos em ninhos etc”.
Ações como esta estão sendo tomadas para garantir a sanidade animal em sua totalidade, física e psicológica, desde a criação, até o abate. Entre as alternativas de produção, estão a adoção de práticas para o bem-estar animal e de procedimentos de abate humanitário.
Conceitos básicos
O bem-estar animal consiste, basicamente, no estado de harmonia do animal em relação ao ambiente em que vive. As diretrizes deste conceito envolvem desde a boa nutrição, até instalações adequadas, que permitam que os animais manifestem seu comportamento natural. Uma das teorias mais aceitas é o Conceito das Cinco Liberdades, descrito em 1965, no que ficou conhecido como Relatório Brambell.
As cinco liberdades:
1. Livre de fome e sede;
2. Livre de desconforto;
3. Livre de dor, ferimentos e doenças;
4. Livre de medo e angústia;
5. Livre para expressar seu comportamento natural.
Estas cinco liberdades servem de base para uma série de legislações de bem-estar animal e abate humanitário ao redor do mundo.
O abate humanitário é definido como o conjunto de procedimentos que garantem o mínimo de estresse e sofrimento aos animais, desde o manejo de embarque na propriedade rural até a operação de sangria no frigorífico.
No Brasil, há uma legislação específica sobre o abate humanitário, o Decreto nº 30.961, de 1952, que torna o estabelecimento industrial responsável pela garantia do bem-estar dos animais, da sua chegada na indústria até o momento do abate, e a Instrução Normativa nº 3, de 2000, que regulamenta métodos de insensibilização para o abate dos animais. Porém, sobre o bem-estar animal, há somente a Instrução Normativa nº 56, de 2008, que faz apenas recomendações sobre boas práticas de manejo e transporte destes animais.
Comissão de bem-estar animal
Diversos setores da sociedade, governo e iniciativa privada promovem ações de incentivo a práticas de bem-estar. Um exemplo é a Comissão Técnica Permanente de Bem-Estar Animal (CTPBEA), do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), criada em 2008, e reestruturada em 2011. O objetivo desta Comissão é coordenar e fomentar ações em bem-estar dos animais de produção e de interesse econômico nos diversos elos da cadeia pecuária.
A médica veterinária, Liziè Buss, é uma das coordenadoras da CTPBEA. Ela afirma que há um interesse crescente do consumidor pelo tema. “A sociedade brasileira está bastante preocupada com o direito animal, quer discutir e colocar ‘em pauta’ este assunto”, revela Liziè. Ela explica que, do outro lado da cadeia, os produtores estão muito interessados no que há de novo em pesquisa e novos procedimentos. “Temos tido bastante demanda por parte deles, no que se refere a informações sobre bem-estar animal”.
Cooperação e capacitação
A Comissão não está sozinha na luta pela diminuição do sofrimento dos animais de corte. Além de promover estas práticas em feiras, palestras e eventos acadêmicos, a ideia é fazer com que produtores tenham acesso a essas informações, demonstrando o manejo adequado.
Para isso, o Mapa fechou um acordo com a WSPA (Sociedade Mundial de Proteção Animal), dando fruto ao Programa Nacional de Abate Humanitário da WSPA (Steps), que visa à capacitação e ao treinamento de pessoas envolvidas com o manejo pré-abate e abate de animais de produção no Brasil. “Oferecemos um curso de capacitação, em conjunto com a WSPA, em que fornecemos treinamento em abate humanitário para frigoríficos”, conta Liziè.
No total, o programa já capacitou aproximadamente 6 mil profissionais de frigorífico, fiscalização e de instituições, em 17 estados brasileiros. Estima-se que, com essa iniciativa, já foram beneficiados mais de cinco bilhões de animais de produção, em mais de 250 frigoríficos no Brasil.
Adesão
José Rodolfo Ciocca, gerente do programa, lembra que a forte adesão e interesse pelo Steps no país demonstram uma grande tendência de melhorar a realidade e se adaptar às novas exigências internacionais de bem-estar animal, o que gera redução de perdas aos frigoríficos, as quais estão associadas direta ou indiretamente, às práticas inadequadas.
“É preciso promover as boas práticas na produção, tornando-a responsável e sustentável. Para isso, cabe aos profissionais da área multiplicar o conhecimento adquirido às pessoas que lidam diretamente com os animais”, afirma Ciocca.
Ganhos
Práticas de bem-estar animal também afetam na lucratividade do produtor. Entre os ganhos, destacam-se, a melhora na qualidade da carne e da carcaça, maior resistência às doenças, segurança dos trabalhadores e dos animais, ganho de peso, e melhor desempenho reprodutivo. O manejo adequado dos animais reduz riscos de perda na produção. “Recursos e procedimentos adequados ao bem-estar, e uma consequente mudança na conduta da mão de obra envolvida, favorecem tanto os animais, como as pessoas”, lembra Ciocca. “O manejo calmo, por exemplo, favorece a redução de possíveis riscos, como fraturas e hematomas, que podem provocar danos à qualidade do produto”, acrescenta.
Liziè também destaca a redução na ocorrência de fraturas e hematomas em animais, para quem adota práticas de bem-estar, lembrando que os frigoríficos costumam descartar as partes machucadas dos animais, causando prejuízo ao produtor no momento da comercialização. “Outra vantagem para o produtor que respeita a sanidade animal é o melhoramento da sua imagem no âmbito mercadológico. Bem-estar animal também é sinônimo de produto com valor agregado”, ensina Liziè.
Certificação
Muitos produtores no Brasil estão preocupados em atender a demanda do consumidor que, a cada dia que passa, exige práticas mais humanas e responsáveis de criação animal. Mas de que forma o consumidor pode reconhecer o produto de origem animal, fabricado de acordo com normas de bem-estar?
Uma da maneiras é através de selos e rótulos de certificação, como o Certified Humane, emitido no Brasil pela certificadora Ecocert, organismo privado de inspeção e certificação. Trata-se de um programa de certificação e de rotulagem de bem-estar animal. Para receber a certificação e utilizar o selo, o produtor e o processador deverão atender aos padrões da Humane Farm Animal Care (HFAC), fundação beneficente sem fins lucrativos, que tem como missão melhorar o bem-estar de animais de fazendas e granjas.
Estes padrões foram desenvolvidos baseados nas diretrizes da Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals, em informações científicas atuais e em outros padrões e diretrizes práticas, reconhecidas para o cuidado apropriado de animais. Estes incluem as exigências mínimas referentes à criação, manejo, transporte e abate das diferentes espécies animais (bovino de corte, bovino leiteiro, frangos, suínos, ovinos etc.).
A Ecocert explica que, “o objetivo do programa Certified Humane Raised & Handled é melhorar a vida de animais de criação”. Desde o início do programa, em 2003, milhões de animais são certificados anualmente. Hoje, é o único selo que requer tratamento humanitário dos animais, desde o nascimento, até o seu abate. “A qualidade das carnes, aves e produtos lácteos, que você consome e serve, dependem, pelo menos em parte, dos cuidados que os animais recebem na fazenda”.
Principais interessados
“Na realidade brasileira, os principais interessados têm sido os produtores, uma vez que eles são responsáveis pelo ciclo completo de criação animal, e, em alguns casos, são os mediadores da venda final dos produtos certificados de origem animal”, conta a Ecocert.
Segunda a certificadora, os abatedouros têm se mostrado um pouco relutantes em relação à certificação, uma vez que implica, em algumas instâncias, em mudanças nas práticas de rotina do local durante o abate. E a certificação também requer que haja um processo de rastreabilidade efetiva, uma vez que os produtos oriundos de animais certificados que são comercializados com o selo, não devem ser misturados àqueles produtos que não são certificados.
Atualmente no Brasil, duas empresas possuem este selo, e no Peru há uma empresa. “Sentimos que de fato existe uma maior preocupação com o tema. Contudo, é difícil as empresas implementarem as modificações necessárias para a conquista do selo. Acreditamos que este é um mercado em ascensão e que este cenário deve se modificar breve, frente às demandas de consumidores preocupados com o tema e aptos a pagar mais por animais criados sob condições adequadas de bem-estar”, afirma a Ecocert.
Vantagens da certificação
A vantagem desta certificação para os produtores e processadores, é a agregação de valor ao produto final, ou seja, pode-se vender um produto final certificado por um valor maior. “Aquele consumidor que compreende a importância do selo e tem o poder aquisitivo suficiente, com certeza, pagará mais por este produto”, afirma a Ecocert. Outra vantagem para o consumidor se refere à garantia de que os animais foram criados e abatidos sob as condições de bem-estar que competem às normas HFAC para cada espécie, ou seja, respeitando as suas necessidades básicas durante todo o seu ciclo de vida.
Métodos Alternativos
O bem-estar animal, de uma forma geral, e, consequentemente, o Selo do Certified Humane Raised & Handled, implica:
- No respeito por parte do produtor às normas de bem-estar, aplicando-as aos animais, desde o nascimento, até o abate.
- Na garantia de que os animais tenham amplo espaço, abrigo e tratamento adequados, evitando o estresse.
- Na proibição do uso de antibióticos e hormônios, exceto para tratamento veterinário.
- Na não utilização de gaiolas, grades e amarras. Os animais precisam ser livres para agir conforme a sua natureza. As galinhas, por exemplo, devem poder bater suas asas e tomar “banhos de terra” e os suínos necessitam de espaço suficiente para se mover, cheirar e socializarem-se com outros suínos.
- Que os animais sejam tratados de forma compassiva, sem o uso de manejo brusco e agressão, ou abusos físicos.
- Que os produtores cumpram com os regulamentos ambientais e de segurança alimentar.
Carolina Galvani aponta uma série de métodos alternativos que diminuem o estresse e sofrimento dos animais de produção. “Um crescente número de produtores está respondendo à oposição dos consumidores ao confinamento intensivo em gaiolas em bateria, e descobrindo que a produção sem gaiolas é economicamente viável e rentável em escala comercial”.
Animais livres
Galvani explica melhor o sistema free-range. “Esse método normalmente combina o sistema em galpão, com acesso durante o dia a áreas externas”. Segundo ela, estas áreas precisam ter grande quantidade de vegetação e cobertura para proteger as aves de possíveis predadores. “Apesar do descanso, da construção de ninhos e da alimentação que ocorrem dentro do galpão, esse sistema permite que as aves se exercitem e tenham mais estímulo ambiental”, completa Galvani.
Quanto aos sistemas alternativos às celas de gestação de suínos, Carolina ensina que a alternativa mais básica é transferir as porcas das celas para baias coletivas. “Muitos produtores de peso no cenário internacional, e alguns pioneiros no Brasil — como a Granja Miunça — já estão implementando sistemas de alojamento de matrizes suínas em grupo com sucesso, provando ser um sistema totalmente eficiente”, afirma Carolina.
“Outros modelos também estão disponíveis, que não só lidam com problemas de bem-estar, mas também promovem benefícios ambientais e de sustentabilidade”, explica Carolina Galvani.
São exemplos, o alojamento em grupo com cama alta e o sistema de galpão em arco, que possuem o chão coberto com palha, maravalha, areia ou grama, que permitem a ventilação natural e o alojamento de grupos em áreas maiores; e o sistema em pastagem com pequenos abrigos.
Alguns produtores que usam esses sistemas, combinam a produção suína com a criação de outros animais, e até mesmo plantações, diversificando a produção e espalhando os animais em uma área maior, o que reduz a carga ambiental da produção concentrada e traz vantagens para comunidades rurais e qualidade de vida para os produtores.
Manejo adequado
O manejo dos animais também merece atenção. Suínos e bovinos, por exemplo, podem ser humanitariamente manejados. Ao invés do tradicional bastão, os animais podem ser conduzidos por placas e bandeiras, reduzindo o estresse. Sistemas de nebulização também diminuem o desgaste psicológico dos animais. Eles consistem na pulverização de finas partículas de água sobre os animais, promovendo um conforto térmico para os animais.
Carolina também recomenda o cuidado no transporte “o ideal é evitar o estresse já no transporte, sempre que possível, criar os animais no mesmo local ou bem próximo ao lugar de abate.”
Abate humanitário
Um dos requisitos básicos para o abate humanitário, é a insensibilização do animal, através de procedimentos que induzem imediatamente à perda de consciência e sensibilidade, impedindo que o animal sinta qualquer tipo de dor até a sua morte. De acordo com a legislação brasileira, a insensibilização pode ser feita de três maneiras:
- Método mecânico: pistola de dardo cativo, em que o dardo penetra o córtex cerebral do animal, ou pistola que provoque um golpe no crânio. Método mais indicado para bovinos.
- Método elétrico: utiliza corrente elétrica. Pode ser realizado individualmente, com a colocação de eletrodos, ou em grupo, no caso de imersão das aves.
- Atmosfera controlada: utiliza gases como o dióxido de carbono e mistura de gases atmosféricos, em que os animais ficam expostos até que alcancem estado de inconsciência.
Galvani alerta sobre os cuidados pré-abate. “não envie animais para o abate se os mesmos não estiverem saudáveis e aptos para o transporte. Em alguns casos, pode ser necessário o abate emergencial na própria fazenda”.
Avanços pelo mundo
- O confinamento em gaiolas em bateria convencionais é proibido em toda a união Europeia, em diversos Estados americanos, no Butão e na capital da Austrália.
- A unilever, fabricante da maionese Hellmann’s, anunciou que não usará mais ovos produzidos em gaiolas a partir de 2020, em todo o mundo, incluindo o Brasil.
- Starbucks, Burger King e Subway já estão usando ovos produzidos sem gaiolas em suas operações na Europa e nos EUA.
- Desde 2012, mais de 60 grandes empresas alimentícias comprometeram-se a não comprar mais carne suína produzida com o uso de celas de gestação.
- Grandes produtores mundiais, como Smithfield Foods, Cargill, Hormel e Tyson anunciaram planos de abandonar o confinamento de suínos em gaiolas.
- Na Nova Zelândia e Austrália, o confinamento de matrizes em gaiolas será descontinuado em 2015 e 2017, respectivamente.
- No início de março, o Canadá também anunciou que irá proibir a prática em todo o país.