A cada minuto o equivalente a um caminhão de lixo plástico é lançado nos oceanos. A quantidade aumentou 50% nos últimos cinco anos
Há cerca de 250 milhões de anos, no final do Triássico, a única placa tectônica supracontinental, a Pangea, por rupturas sucessivas, deu origem aos seis continentes do planeta: África, América, Antártida, Ásia, Europa e Oceania.
A palavra “continente” tem origem no polissêmico verbo “conter”, do latim con e tenere (“ter”). A continência, ao contrário da incontinência, expressa a capacidade fisiológica, psicológica, social e até política de limitar-se, de parar, de deter-se. “Continente” deriva de continens (“contínuo, ininterrupto”) e entis (particípio presente de continere: “conter, abranger”). E, na geografia, designa amplas extensões contínuas de terra, cercadas por oceanos.
Os seis continentes levaram milhões de anos para se constituir. Agora, em menos de um século, um sétimo continente, de geometria variável, com mais de 2 milhões de quilômetros quadrados, se constitui entre a Califórnia e o Havaí. Os outros são feitos de rochas e terra. O sétimo “continente” está a se formar com resíduos plásticos, no centro de um vórtice de correntes marítimas.
Nessa área calma do Oceano Pacífico, há milênios o giro das correntes marítimas juntam destroços e resíduos flutuantes de natureza orgânica e biodegradável. Com o acúmulo de plásticos, a situação mudou. Na superfície oceânica, esse “continente” de origem antropogênica é invisível. A ação dos raios solares e das ondas fragmenta os plásticos em partículas diminutas.
Partículas com mais de 5 milímetros são chamadas de macroplásticos; e as inferiores, de microplásticos. As com menos de 10 milésimos de milímetro são nanoplásticos. Um nanômetro é igual a 1 bilionésimo de 1 metro. São mais de 5 mil categorias de polímeros, com 10 mil substâncias químicas incorporadas aos plásticos, em coquetéis de dez a 30 diferentes aditivos, em função de seus usos. E persistirão no ambiente por centenas de anos. A concentração média de plásticos é da ordem de 0,5 quilo por quilômetro quadrado de oceano. Os maiores valores estão nos Atlânticos Sul e Norte (1,2 e 0,8 quilo por quilômetro quadrado) e no Mediterrâneo (0,7 quilo por quilômetro quadrado). O desafio é global.
Essas partículas com poluentes persistentes acabam no estômago de peixes, águas-vivas, tartarugas, mamíferos marinhos e aves. E terminam por envenenar seus órgãos externos e internos. Mais de 300 espécies são afetadas por esse vórtex ou “sopa” de lixo plástico. O giro fluidodinâmico deixa escapar um pouco do conteúdo por dois braços, em direção ao Japão e aos Estados Unidos.
Segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), a poluição plástica mata mais de 1 milhão de aves marinhas e 100 mil mamíferos marinhos no planeta todos os anos. E, seguindo as cadeias alimentares, por meio dos peixes esses detritos plásticos chegam aos pratos e ao sistema digestivo dos humanos, e até ao leite materno.
A presença nos órgãos humanos de nanoplásticos e das substâncias químicas neles incorporadas poderia estar relacionada a inflamação no intestino; estresse oxidativo; apoptose celular; necrose tecidual; acidentes vasculares; doenças cardiovasculares, autoimunes e neurodegenerativas; e até câncer. Estenoses, cirroses, carcinomatoses, necroses, apoptoses e outras “oses” seriam “plasticoses”?
Os usos do plástico não cessam de aumentar. O setor industrial urbano é o único responsável por sua produção, em 99% dos casos a partir do petróleo. A produção industrial de plásticos foi da ordem de 2 milhões de toneladas em 1950. Cresceu cem vezes em 50 anos. E 200 vezes mais em cerca de 20 anos, até este Ano da Graça de 2023. A projeção é que seja fabricado 1,2 bilhão de toneladas de plástico em 2060. Cerca de 7% da extração total de petróleo no planeta é destinada à produção de plásticos. De 1950 até hoje produziram-se mais de 8 bilhões de toneladas de plásticos. Apenas 500 mil toneladas foram recicladas, e outras 700 mil, incineradas. Os resíduos plásticos espalham-se e acumulam-se na terra e nos espaços líquidos e aéreos.
A cada minuto o equivalente a um caminhão de lixo plástico é lançado nos oceanos. A quantidade de plástico nos oceanos aumentou 50% nos últimos cinco anos. Partículas de microplástico foram encontradas no gelo perto do Pólo Norte e até em peixes das áreas mais profundas e escuras dos oceanos. Em alguns lugares desse continente flutuante entre os Estados Unidos e o Japão, a massa do conjunto dessas partículas plásticas excede em dez vezes a do zooplâncton.
Em cidades como Nova York, Paris ou São Paulo chove plástico. Bilhões de partículas de microplástico caem dos céus além das gotas d’água
A chuva ácida, provocada por poluentes atmosféricos como o enxofre, afetou regiões da Europa, Ásia e América do Norte no século 20. Na década de 1980, a Mata Atlântica em Cubatão (SP), próxima à refinaria e às indústrias químicas, foi degradada pela poluição atmosférica, causadora de chuvas ácidas e até básicas. Programas de combate a essa poluição, desde a redução do teor de enxofre nos combustíveis até a colocação de filtros nas chaminés, reduziram o problema. Agora o desafio é a chuva plástica.
Em cidades como Nova York, Paris ou São Paulo chove plástico. Bilhões de partículas de microplástico caem dos céus além das gotas d’água. Em 25 de maio passado, a previsão meteorológica anunciou uma chuva de plástico sobre Paris, como forma de denunciar a gravidade do tema. A maioria das partículas coletadas em diversos locais da capital francesa é proveniente de roupas de náilon e poliéster, das quais se desprega com o uso e a fricção. E também do poliéster, náilon e raiom dos cordonéis e lonas de pneus. Paris recebe dos céus de 40 a 48 quilos de micropartículas de plástico por dia. Em chuvas intensas, a queda de plásticos pode ser multiplicada por dez.
Entre 29 de maio e 2 de junho de 2023, 193 nações reuniram-se em Paris, sob a égide da ONU, para tentar um primeiro tratado internacional vinculante contra a poluição plástica e por obrigações de reciclagem. O total de plásticos nos ecossistemas aquáticos poderá triplicar, de 9 milhões a 14 milhões de toneladas por ano para algo entre 23 milhões e 37 milhões em 2040. Fora um guia prático da ONU para combater plásticos, pouco foi feito até agora.
Enquanto o mundo urbano busca soluções, a agropecuária brasileira é exemplar na gestão dos resíduos plásticos. Além da busca do lixo zero no processo produtivo, o correto destino das embalagens plásticas de insumos agrícolas mobiliza a cadeia produtiva desde a década de 1980. Os debates evoluíram até a aprovação da Lei Federal nº 9.974/2000 e a criação do Instituto Nacional de Embalagens Vazias (inpEV), em 2001. O inpEV, entidade sem fins lucrativos, integra o Sistema Campo Limpo e é responsável pela operacionalização da logística reversa das embalagens em todo o país. Integram o inpEV mais de 100 empresas e entidades do setor.
Como publicado na Revista Oeste, o manejo e a destinação ambientalmente corretos das embalagens vazias de defensivos agrícolas têm como regra as responsabilidades compartilhadas entre os agentes da produção: agricultores, canais de distribuição e cooperativas, indústria e poder público. Os usuários de defensivos agrícolas lavam, inutilizam (furam e cortam) e devolvem as embalagens vazias aos comerciantes. Estes indicam o local da devolução das embalagens pós-consumo, as mantêm e comprovam o recebimento. Os fabricantes se responsabilizam pela logística e pela correta destinação.
O Sistema Campo Limpo conta com 411 unidades de recebimento de embalagens. Mais de 4,1 mil unidades itinerantes completam a capilaridade do sistema de coleta e facilitam a entrega para agricultores em áreas distantes das unidades fixas de recebimento. Cerca de 1,7 mil profissionais participam do Sistema Campo Limpo, sendo 273 colaboradores do inpEV.
Entre 2002 e 2020, a energia economizada foi equivalente ao necessário para abastecer 5 milhões de casas durante um ano ou para um caminhão dar 15 mil voltas em torno da Terra. Em emissões evitadas, o período totalizou 823 mil toneladas de dióxido de carbono. O Brasil é referência mundial em logística reversa de embalagens vazias agrícolas: 94% das embalagens plásticas primárias foram destinadas corretamente pelo inpEV — um recorde planetário.
A França não passa de 77%. Segue o Canadá, com 73%. Os Estados Unidos ocupam o nono lugar no ranking, com 33%. Muitas indústrias brasileiras de defensivos operam em ciclo fechado: recebem anualmente a mesma quantidade de plástico reciclado para utilizar na confecção de suas embalagens. Outra parte desse plástico reciclado é destinada à indústria de mangueiras, condutores etc. Das embalagens destinadas, 95% são reciclados e só 5% são incinerados.
A agricultura ilustra como o problema não está no plástico em si, nem muito menos a solução está em seu banimento. Se as partes plásticas dos veículos fossem de metal ou madeira, por exemplo, as emissões de carbono na fabricação e no uso (por causa do aumento do peso) seriam maiores. Em muitos de seus empregos, não há sentido em substituir o plástico por metal, vidro, madeira, algodão ou outros materiais. A emissão de gases de efeito estufa seria agravada, como demonstrou em 2022 o estudo da McKinsey Climate Impact of Plastics. Assim como na preservação da água e da vegetação nativa, o campo tem muito a ensinar ao mundo urbano em matéria de uso e reciclagem do plástico. A agricultura brasileira é exemplo de contenção, de atitude continente no destino e no uso do plástico de embalagens. Se dependesse só do agronegócio brasileiro, a fonte de plásticos para o “sétimo continente” minguaria. E ele desapareceria do oceano e do imaginário, como uma Atlântida.