“O gaúcho “gaudério” (autônomo e sem patrão), valente e independente por natureza, em seu ciclo preliminar, chamado por Era do Couro, preava este gado xucro, liberto na Pampa, errando pela planura, de forma romanceada por diversos autores”
A vida rural contém vicissitudes inerentes ao campo e ao convívio diuturno com a Natureza, a fauna e a flora, o clima, o relevo e as amplas paisagens, que permitem vislumbrar horizontes infinitos na amplitude da Pampa, na metade meridional do Rio Grande do Sul. Desde o povoamento da Capitania ou “Continente” de São Pedro, como era chamada antigamente a extensão territorial deste estado-membro, a base da economia gaúcha era, e continua sendo, fundamentalmente ligada à atividade agrária agropecuária. Porque o início da bovinocultura e da cultura em si, tanto como cultivo e plantação na terra, quanto enquanto formação educacional, confundiram-se intrinsecamente à tradição, à colonização e à composição das estâncias.
Este artigo se propõe a resgatar a passagem histórica que forjou a população do extremo sul-brasileiro; para explanar sua têmpera, na forma de pensar e agir; e conectar os usos e costumes vigentes outrora, mas que, remanescem afiados no entendimento telúrico e na base da economia campeira, arraigados no Direito aplicado ao agronegócio, no agrarismo agropecuário moderno gaúcho. E tanto é assim que as etapas históricas deste povo estão intimamente relacionadas ao gado, desde a nomenclatura, já que, aproximadamente a quatro séculos eram introduzidos na Pampa pelos jesuítas missioneiros, que encontraram campos nativos propícios ao pastoreio, de cobertura pastiçal rasteira e clima ameno, evoluindo paralelamente à civilidade.
Após o Tratado de Madri e o desmantelamento dos Sete Povos das Missões, o gado outrora tangido pelos índios guaranis catequisados, dispersou-se pela vastidão do campo, compondo a figura do gaúcho, considerado um centauro campeiro, tal sua destreza montado, dada a interação entre o homem, o cavalo, o boi e a Pampa. Para que se possa dimensionar estes personagens, em sua essência, é imprescindível imaginar, de forma empática, a realidade que os criou. Primeiro diante das suas idiossincrasias, que os distinguem do resto da população brasileira, ao miscigenar principalmente caucasianos europeus hispânico-lusitanos, negros angolanos da África e indígenas autóctones dos grupos tribais guaranis, jês e pampianos, cimbrando a formação da identidade do gaúcho.
O gaúcho “gaudério” (autônomo e sem patrão), valente e independente por natureza, em seu ciclo preliminar, chamado por Era do Couro, preava este gado xucro, liberto na Pampa, errando pela planura, de forma romanceada por diversos autores. Depois houve o Ciclo do Charque (do araucano: salgar carne, consistente em forma de conservação de mantas desidratadas de carne salgada), com a fundação das enormes charqueadas, aumentando a sedentariedade, e, posteriormente, com o advento da indústria frigorífica, já no século XX, o da Carne. Paralelamente houve a evolução da pecuária rio-grandense, que é diferente daquela praticada no restante do país, conforme um saber-fazer distinto, em uma verdadeira simbiose.
Conforme condições específicas do Bioma Pampa, habitat original desde o Período Cenozoico de enormes herbívoros pré-históricos, que já mantinham a paisagem campestre, típica de estepes, com clima temperado, parecido ao europeu, de estações bem definidas e temperaturas mais baixas, embora sem ocorrência de neve, naturalmente foi propiciada a introdução de raças britânicas (Angus e Hereford) e continentais (Charolesa), melhorando a pecuária sul-brasileira, pelo cruzamento ao gado “crioulo” (missioneiro) a esta melhoria genética e seleção racial, para qualificação de carcaças, maciez, sabor e suculência, que notabilizaram a carne produzida no Pampa Gaúcho, à semelhança da uruguaia e argentina.
Este sincretismo, mesmo não intencional, acabou por fazer da pecuária um fator preponderante de preservação do Bioma Pampa, pois não prejudicou a biodiversidade, serviu de habitat para exuberante fauna silvestre e manteve a flora nativa, conservou a paisagem natural campestre, diante da vocação nata do gaúcho como cavaleiro e vaqueiro. E, atualmente, continua a ter seu “(…) potencial econômico para a produção de carne bovina com menores emissões de gases de efeito estufa e alta produtividade e retorno econômico”, conforme Malafaia, diante dos resultados da pesquisa Pecus da EMBRAPA – Pecuária Sul, com aptidão para produzir Carne Carbono Neutro, produzida a pasto, de excelente qualidade, sem desmatamento, competitivamente e de forma sustentável!
Todavia, o cenário mundial dos negócios que envolvem as atividades agrárias mudou em circunstância da globalização e da adoção de inovações, tanto tecnológicas, quanto de sistemas de produção, fragilizando o setor primário, pela multinacionalização e a necessidade de maior intensividade, escala e padronização de produtos e processos, além do aumento de custos trabalhistas com mão-de-obra especializada e o descaso de políticas públicas em relação à bovinocultura. Este contexto, fortaleceu a “Transferência Empírica do Saber Fazer Intergeracional” (…o vovô fazia assim…), ao favorecer o amadorismo (em oposição ao empreendedorismo profissional) e fortificar os contratos verbais, no “aperto de mão” e no “fio do bigode”, evidenciando forte confiança mútua entre os pares, mas hesitação perante terceiros.
Diante destas evidências, os usos e costumes ancestrais propunham regras extrajurídicas de caráter local e autônomas, consistentes no consenso da comunidade, em pequenas proporções, criando uma espécie de direito arcaico, conforme a consciência coletiva de um povo, segundo definiam Savigny e Puchta, seria o espírito de um povo concretizado comunitariamente, a consciência jurídica nacional, ou de uma parte da população. Obviamente, desde o advento da Lei Portuguesa da Boa Razão, aos 18 de agosto de 1769, nos moldes da Escola Histórica Alemã, não se pode, no Brasil, se discutir a admissibilidade de costumes contra legem, por Ribas.
Quando a amplitude da imensidão pampeana foi entrecortada por alambrados e as “mangueiras ou taipas de pedra” (verdadeiros monumentos que rememoram a escravidão), já se desenhavam estes direitos consuetudinários. Por exemplo, na prática, a definição da repartição da responsabilidade na manutenção de uma cerca divisória entre os confinantes é bem simples e igualitária, será do proprietário em que os mourões estão para dentro, internos em relação ao arame. Da mesma forma, a retenção pelo tratador de ¼ das crias de uma vaca extraviada, consoante Cirne Lima. Pontes de Miranda já separava o rigor do direito pátrio ao português, no que concerne a sua incorporação ipso facto por acessão de coisa construída ou plantada, no que se refere ao Direito de Superfície, admitindo a agregação ao solo tudo o que nele é implantado de forma perene, espelhando a prática rural.
Mesmo nos dias atuais o Direito Costumeiro, enquanto fonte do Direito Formal, ainda tem sua importância, posta a existência de contratos rurais não escritos, defesa pelo art. 92 do Estatuto da Terra, nas lições de Wellington, que, inclusive, têm tido o condão de modificar a imperatividade da norma grafada nos contratos de Direito Agrário. Para tanto, basta enunciar a controversa questão da fixação do preço do arrendamento em produtos, expressamente vedada pelo Estatuto da Terra, inicialmente optando pela moeda corrente, na redação do Decreto 59.566/66, mas debatido corriqueiramente nas lides judiciárias, diante das alterações flexibilizadas pela Lei 11.443/07, já que expressamente autorizado o pagamento facultativo do equivalente em frutos ou produtos, como sugerido por Querubini, possibilitando que conste cláusula de liquidação financeira válida, mediante adoção de critério de apuração da quantia fixada em produtos para valoração monetária.
Na mesma senda, o contrato atípico de Pastoreio, frequente na prática do agronegócio, aumentando seu uso atual pela expansão da fronteira agrícola, mormente pela ampliação da integração lavoura-pecuária oportunizada pelo plantio direto na cultura da soja, utilizando-se pecuária no intervalo hibernal de inverno, engordando na cobertura vegetal excedente, que servirá de “cama” a ser dessecada. Comumente firmado informal e verbalmente, fundado nos usos e costumes, e não ter previsão na legislação agrária vigente, surge uma série de dúvidas, esclarecidas na publicação de Ghigino.
Encerro parafraseando os versos de Silva Rillo: “Naqueles tempos, sim, naqueles tempos. Os bois mandavam nos homens e por isto a vida era mansa nas cidadezinhas. Os touros cumpriam o seu mister e as vacas, pacientes, pariam, terneiros e terneiros e terneiros. O campo engordava os bois e as tropas de abril engordavam os homens. (…) Por isto um berro de boi nos toca tanto. E tão profundamente!” E assim segue o campo, o gado e o campeiro, pendoando sementes fecundas para o estudo transversal do Direito Agrário, para sua aplicação ao agronegócio, envolvendo história, cultura e a pecuária na Pampa.
Alexandre Valente Selistre
Advogado e Sócio Fundador da Selistre Advogados em Porto Alegre/RS. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais – PUCRS. Mestre e doutorando em Agronegócios – UFRGS/CEPAN. Pós-graduado em Direito Agrário e Ambiental Aplicado ao Agronegócio – I-UMA/UNIP. Especialista em Direito Processual Ambiental – IDC. Pesquisador do Núcleo de Estudos em Sistemas de Produção de Bovinos de Corte e Cadeia Produtiva – NESPro. Membro da União Brasileira dos Agraristas Universitários – UBAU. Articulista no site Direitoagrario.com e na revista Crioulos. Palestrante e professor. Pecuarista na centenária Fazenda Santo Antônio, em Canguçu/RS.
e-mail: valenteselistre@gmail.com
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