Nova presidente é a primeira mulher a comandar a entidade em seus cinquenta anos de fundação
A SNA conversou com Silvia Massruhá, nova presidente da Embrapa e primeira mulher a comandar a entidade em seus cinquenta anos de fundação, completados em 2023.
Ela discorreu extensamente sobre a importância das pesquisas e tecnologias que, em parceria com as comunidades locais, viabilizou o solo do Cerrado para a Agricultura, nas décadas que marcaram a grande expansão para o interior do Brasil, a partir da década de 1970.
Para ela, que é funcionária de carreira da Embrapa, com sólida formação acadêmica e atuação na área de agricultura digital, o desafio de equilibrar crescimento e preservação também passa pela expertise da entidade, que serviu de referência para muitos países.
Otimista para os próximos cinquenta anos, Silvia afirma que o Brasil seguirá como expoente na produção agrícola, focando na economia, meio ambiente e na liderança da revolução tropical sustentável. Confira a seguir:
SNA: Assumindo a presidência da Embrapa no aniversário de 50 anos da entidade, e sendo a primeira mulher a ocupar o cargo, que balanço a Sra. faz desse meio século de atuação, que coincidiu com a ascensão do Brasil ao patamar dos gigantes da produção e exportação agrícola mundial?
Silvia Massruhá: a trajetória da agropecuária brasileira nos últimos 50 anos, em que houve investimento em pesquisa, é a melhor resposta sobre o papel da ciência, quando se considera o País importador e dependente da década de 1970, e o protagonismo nacional de hoje, que elevou o Brasil à categoria de um dos maiores expoentes mundiais na produção de alimentos. A Embrapa foi uma das grandes responsáveis por essa conquista, pois muitas das tecnologias tropicais que alavancaram a produção agrícola tem a assinatura da entidade. Ao revisitar o passado, destacam-se importantes conquistas, como a tropicalização dos solos do Cerrado, o que trouxe uma verdadeira revolução econômica para o bioma. O conhecimento científico aplicado promoveu a transformação de solos inférteis em áreas agricultáveis e altamente produtivas. A continuidade dessa conquista, hoje, se reflete, por exemplo, no Trigo Tropical. Outro destaque foi o domínio da Fixação Biológica de Nitrogênio, que revolucionou a cultura da soja. Sua adoção resulta em economia de bilhões de dólares todos os anos para o Brasil, ao dispensar a importação de fertilizantes nitrogenados. Ainda nos anos de 1993 a 2003, a implementação do Zoneamento Agrícola de Risco Climático (Zarc) foi um marco para a década. A tecnologia permite identificar as janelas de plantio em que há menor chance de frustração de safra, devido a eventos climáticos adversos. Mais recentemente, ganhou impulso a Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF): sistemas integrados de produção que otimizam o uso da terra e elevam a produtividade. Atualmente, a área com sistemas integrados de produção agropecuária no Brasil está estimada em aproximadamente 17,4 milhões de hectares. A previsão é de seguir ampliando essa área. Sistemas integrados são uma alternativa de produção eficiente para a recuperação de áreas alteradas ou degradadas. Aliam o aumento da produtividade com a conservação de recursos naturais, permitindo o uso produtivo do solo durante todo o ano. Os sistemas integrados e as tecnologias conservacionistas, em sinergia com as ciências digitais e transversais, são agora o grande paradigma da revolução sustentável que iniciou com a segurança alimentar que alcançamos com o domínio da agricultura tropical, e avançará como solução para os desafios climáticos e de inclusão produtiva do presente e do futuro.
SNA: Quais fatores foram determinantes para que alcançássemos um protagonismo como o atual, e como superar os desafios que ainda permanecem, como o gargalo logístico e estrutural?
Silvia Massruhá: entre os fatores determinantes para o País alcançar o protagonismo mundial na produção de alimentos foi o investimento na ciência agropecuária, no melhoramento genético de diversas culturas e sua adaptação a diferentes biomas. Por exemplo, a tropicalização da soja e, mais recentemente, o trigo no bioma Cerrado. Outro exemplo foi a adaptação de fruteiras de clima temperado a condições do clima no semiárido nordestino, onde atualmente temos um grande polo exportador de frutas. No caso da pecuária, o melhoramento genético de bovinos, destacamos que houve um processo contínuo de seleção e de reprodução de animais com características de interesse, o que permitiu que alcançássemos a posição de maior produtor e exportador de carne bovina do mundo. Porém, fizemos tudo isso tendo como fio condutor a sustentabilidade ambiental, com destaques para a Fixação Biológica do Nitrogênio (FBN), o Plantio Direto, a ILPF, a recuperação de áreas degradadas e a contínua pesquisa para o desenvolvimento de bioinsumos em substituição ou redução de defensivos ou fertilizantes químicos nas lavouras. Entre os desafios estão a necessidade de trabalharmos com o foco na sustentabilidade, a questão das mudanças do clima, a agricultura digital, a intensificação tecnológica e, claro, a logística, que depende basicamente de políticas públicas e recursos orçamentários. Para além disso, a Embrapa desenvolveu e disponibilizou o Sistema de Inteligência Territorial Estratégica da Macrologística Agropecuária Brasileira, que reúne dados dispersos em mais de 20 órgãos e instituições, gerando mapas e dados sobre a logística de dez produtos agropecuários que respondem por cerca de 90% das cargas no Brasil. Essa tem sido a nossa contribuição para a melhoria da logística brasileira e para a consolidação de políticas públicas neste campo.
SNA: A Embrapa se tornou referência dentro e fora do País nos quesitos de pesquisa, fomento e formulação de políticas públicas agrícolas. Esse prestígio e expertise ancorou-se muito nas novas tecnologias e métodos que a entidade ajudou a difundir, além de seus cursos de capacitação. Tendo percorrido sua trajetória profissional e acadêmica sempre atenta ao progresso técnico e científico do setor, o que testemunhou de mais importante nesse processo que marcou a inclusão digital do campo brasileiro?
Silvia Massruhá: São 33 anos de experiência profissional na Embrapa, nos quais eu tive a oportunidade de exercer importantes funções, desde pesquisadora, chefe de pesquisa a chefe-geral da Embrapa Agricultura Digital, no nosso centro de pesquisa localizado em Campinas (SP). Como cientista, com atuação na área de computação aplicada à agropecuária, tive a oportunidade de atuar na área de gestão de rebanho leiteiro quando cursava o meu mestrado em engenharia de software e, naquela época, desenvolvemos um aplicativo em parceria com a Embrapa Pecuária Sudeste, denominado Lactus. No meu doutorado na área de inteligência artificial, no início dos anos 2000, trabalhei com estudo de caso em diagnóstico de doenças de plantas, juntamente com fitopatologistas da Embrapa. Construímos, ao longo desses anos, importantes projetos, pesquisas e, principalmente, parcerias com instituições públicas e privadas, startups, com universidades nacionais e internacionais e empresas privadas de relevância para o Brasil. São vários marcos da inclusão digital do campo brasileiro, começando pela chegada da internet, permitindo a criação de aplicativos de gerenciamento de propriedades rurais à rastreabilidade, que hoje é um marco determinante para a qualidade dos alimentos, sendo inclusive um indicador de sustentabilidade. A agricultura de precisão é outro paradigma fundamental, que trabalha com os sistemas inteligentes, permitindo ao produtor rural saber o momento de usar os insumos agropecuários e na medida certa, entre outros. Agora, presenciamos a revolução dos bioinsumos, uma frente importante para a descarbonização das cadeias produtivas agropecuárias. Esses fenômenos estão em curso e a Embrapa tem participado de todos eles.
SNA: Que papel a Embrapa pode desempenhar no importante debate que tenta equilibrar a necessária expansão das áreas de cultivo com a preservação dos biomas, além da convivência pacífica com populações indígenas e demandas dos movimentos sociais agrários?
Silvia Massruhá: a Embrapa tem papel fundamental no equilíbrio entre produção sustentável e preservação dos biomas. Suas tecnologias, em parceria com universidades, organizações estaduais de pesquisa agropecuária, iniciativa privada, organismos internacionais, entre outros, vem permitindo que a produção agrícola aumente sem expandir a ocupação do território nacional, garantindo à agricultura o chamado efeito poupa-terra nas mais diversas cadeias do agro brasileiro. A adoção de um considerável número de tecnologias em várias frentes do processo produtivo tem permitido produzir grandes volumes, com alta qualidade, de forma sustentável sob todos os aspectos, além de viabilizar a manutenção das florestas nativas. A capacidade tecnológica para fazer gestão territorial, manejo integrado de pragas e doenças, utilizar sistemas integrados de produção que prolongam a vida dos solos, entre outros aspectos, são os fatores garantidores do sucesso da nossa agricultura. Porém, é fundamental que o resultado das pesquisas desenvolvidas pela Embrapa atinja todos os setores, e, sem dúvida, os pequenos produtores são prioridade, porque, de acordo com o Censo Agropecuário de 2017, representam 77% dos estabelecimentos agrícolas do Brasil. A tecnologia é uma exigência do consumidor, daí a necessidade de reduzir a lacuna que ainda existe entre grandes e pequenos produtores, especialmente no que diz respeito à tecnologia digital. Só assim será possível integrar de forma efetiva os processos produtivos, atendendo as necessidades reais desse segmento, com geração de impactos socioeconômicos no curto e no médio prazo.
SNA: O que esperar dos próximos 50 anos? Está otimista, na perspectiva geral?
Silvia Massruhá: Com certeza estamos otimistas. O futuro está inserido em uma série de cenários complexos, principalmente no que diz respeito à sustentabilidade, uma das prioridades da pauta global da ciência hoje. Nesse contexto, a Embrapa já é tida como uma referência pelos avanços com os quais já contribuiu e tem servido de modelo inclusive para outros países. Daqui para frente, nosso compromisso é com todos os agricultores do País, no combate à pobreza e às desigualdades. A Embrapa, plural e democrática, precisa ter consciência das transições nutricionais, energéticas e ambientais, a instituição será o pilar da revolução sustentável nos trópicos, contribuindo com a superação dos desafios das mudanças climáticas, da inclusão produtiva e digital. A nossa meta é atuar assertivamente na produção de alimentos saudáveis, em bases sustentáveis considerando as três dimensões: ambiental, econômica e social.