Em pouco mais de dois anos, o projeto #FaçaumBemINCRÍVEL já evitou o desperdício de mais de 312 toneladas de alimentos que foram doadas a famílias em vulnerabilidade social. Na foto, Simone Silotti, fundadora do projeto, em meio a mais duas produtoras que fazem parte da iniciativa
Era um domingo, no fim de março de 2020, início de uma das maiores pandemias da história, quando a produtora rural Simone Silotti se viu obrigada a jogar fora cerca de 1,5 toneladas de alface, rúcula e agrião hidropônicos produzidos na sua propriedade, Quintal da Coruja, na Vila de Quatinga, em Mogi das Cruzes, a 70 km da capital de São Paulo.
O fechamento abrupto do comércio, indústria e restaurantes, como medida protetiva para impedir a transmissão do coronavírus, fez com que a produção de hortaliças, planejada para a páscoa daquele ano, não tivesse outra saída que não o descarte.
A situação também assolava os demais produtores da região, que somavam seis toneladas entre frutas, hortaliças e verduras prestes a serem descartadas.
“Quando chega um ponto de colheita tem que descartar o produto para evitar o surgimento de pragas e não teria outro destino. Na dor, eu não tive coragem de mandar destruir, e conversei com meus vizinhos produtores, e todos estavam tão desolados quanto eu”, conta Simone, em entrevista à Revista A Lavoura.
Início do projeto
A sensação de impotência aumentava ao passo que Simone, que mora na região metropolitana de São Paulo, em Santo André, também via a fome crescer nas favelas.
“Também estava acompanhando as dores das favelas, com muitas pessoas passando fome, chorei um domingo inteiro”.
Não lhe parecia justo que, de um lado, pequenos produtores tivessem que descartar toneladas de alimentos, enquanto nas periferias das cidades pessoas não tinham o que comer. Foi aí que Simone teve uma ideia.
Apesar de ser produtora rural há apenas oito anos, Simone é filha de agricultores e, por duas vezes, viveu o êxodo rural na infância, quando junto da sua família teve que ir para a periferia de São Paulo, por dificuldades enfrentadas no campo.
Quando criança, viveu na favela do Capão Redondo, onde viu de perto a fome e as dificuldades enfrentadas pela população.
“Está no meu DNA …Quando eu morava no Capão Redondo, ali era uma favela, sem infraestrutura nenhuma”, diz Simone.
Por conhecer de perto a pobreza no campo e no asfalto, no mesmo domingo daquele fim de março, a produtora montou uma vaquinha virtual para arrecadar recursos que possibilitassem a compra dos alimentos que seriam descartados pelos produtores de Quatinga, para doá-los a famílias em situação de vulnerabilidade nas periferias.
Em poucos dias, uma matéria publicada na Folha de São Paulo, sobre a iniciativa, despertou o interesse de pessoas físicas e empresas, como o Banco do Brasil, Braskem e a Yara Fertilizantes, que apoiaram a vaquinha. E foi assim que nasceu o projeto #FaçaumBemINCRÍVEL.
“Na matéria, eu dizia que as empresas que estavam doando cestas básicas considerassem doar frutas, verduras e legumes também (…) Conseguimos R$ 1 milhão, o que permitiu resgatar 100 toneladas de frutas, verduras e legumes, que doamos para famílias carentes. Essa foi a origem do projeto”, explica Simone.
“Todos os produtores do Alto Tietê [cinturão verde agrícola de São Paulo] estavam destruindo suas produções e nós estávamos colhendo e doando”, destaca.
Monica Bacchiega, especialista de Sustentabilidade da Yara Brasil, contou à A Lavoura, que a empresa logo se interessou pelo projeto, ao enxergar nele uma forma de contribuir para o compromisso da companhia em ajudar as regiões onde atua.
“O desperdício de alimentos é algo inconcebível, ainda mais no momento de pandemia em que as pessoas precisavam estar mais saudáveis (…) Precisávamos levar o projeto para Cubatão, e a Simone não mediu esforços e foi para lá também. Desde o início da pandemia entregamos juntos mais de 38 toneladas de verduras, e termos mais entregas para este ano”, detalha a especialista.
Resultados e desafios
De lá pra cá, já foram 312 toneladas de alimentos doados, 38 toneladas em conjunto com a Yara, para mais de 17 municípios da região metropolitana de São Paulo, que já beneficiaram quase 300 mil famílias.
“Eu me encontrei nessa missão. Não me vejo fazendo outra coisa hoje. Espero poder levar essa voz para mais pessoas”, conta Simone.
Mas mesmo com o fim do momento crítico da pandemia e o crescimento do projeto, as dificuldades para os produtores continuam.
O aumento da inflação dos alimentos e insumos da produção, bem como do diesel, a deterioração da renda dos consumidores, e a alta margem de lucro praticada por atravessadores, ainda afetam o pequeno agricultor.
“Os produtores têm recebido cada vez menos e os consumidores pagando cada vez mais”, destaca Simone.
Para enfrentar os desafios e atender ao projeto, os produtores resolveram se associar, criando a Cooperativa Agrícola de Quatinga e Região (CAQ), que tem como um dos principais diferenciais a liderança feminina.
“A atividade agrícola de pequeno porte seria quase inviável no Brasil se ela continuasse independente. Comecei a pensar em uma estrutura de engajamento e cooperação como um caminho (…) Somos 20 produtores fazendo parte do projeto e o transformamos em uma cooperativa. Quatro mulheres assumem a gestão da cooperativa, um marco importante”, explica.
Apesar da ajuda de algumas empresas, a vaquinha virtual também continua.
Para doar qualquer valor a partir de R$25 CLIQUE AQUI.
Por whatsapp, os produtores informam os alimentos e a quantidade de excedente que não foi vendida. Simone, então, joga os dados em uma planilha e começa a buscar recursos para pagar essa produção e poder distribuí-la a quem precisa.
Quando o valor arrecadado supera o esperado, a iniciativa consegue incluir mais três cooperativas.
Os dados coletados também acabam servindo como uma base de inteligência para devolver informações aos produtores, auxiliando na escolha de um mix melhor de plantio.
Sonhos
“Quero trazer o prêmio Nobel da paz para o Brasil com esse projeto”, afirma Simone.
Segundo ela, o combate ao desperdício é uma agenda ambiental, de redução das emissões de carbono, e social, na diminuição da fome e do êxodo rural.
“O combate ao desperdício contribui para a descarbonização. Olhar para o desperdício já é justificado pela questão das mudanças climáticas, além das pautas do combate à fome e à desnutrição. O projeto também permite dar condições para que o produtor rural continue sendo produtor rural”, detalha.
Em 2022, 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer, 14 milhões a mais que em 2021, segundo o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, lançado em junho. A pesquisa ainda mostra que mais da metade (58,7%) da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau.
Simone lembra que o Brasil está entre os dez países que mais desperdiçam alimentos no mundo. Estima-se que cerca de 40% das hortaliças produzidas acabem no lixo, e boa parte do desperdício acontece no campo.
“Aquilo que você não consegue comercializar se traduz em imensos prejuízos para o pequeno produtor. Ele às vezes até consegue comercializar, porém por preços irrisórios”, explica a produtora.
“Quero transformar Quatinga na capital do desperdício zero”, pontua Simone.
Segundo ela, há também uma falta de empatia pela pobreza no campo. Simone lembra que são quase 4 milhões de pequenos produtores rurais no Brasil, com boa parte deles na pobreza e abaixo da linha da pobreza, e que projetos como esse também podem combater essa realidade.
“Esse dinheiro remunera o produtor, dá condições de empregar e alimentar a família e nutrir toda a economia da Vila de Quatinga, mas que poderia ser qualquer vila no Brasil”.