Mercado clandestino e criminoso movimenta mais de R$ 10 bilhões por ano e retira aproximadamente 38 milhões de espécimes dos seus habitats naturais no país
Territorialmente continental e com a fauna e flora bastante diversas, o Brasil está entre os lugares com a maior incidência de tráfico ilegal de animais silvestres do mundo, ao lado de outros países como China, Indonésia, Malásia e Tailândia.
Estados Unidos e Europa, por sua vez, figuram como fortes compradores desse mercado clandestino, que inclui a comercialização de aves tropicais, ovos, répteis, primatas e outras espécies exóticas.
De acordo com a Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas), estima-se que o contrabando de espécies nativas ou em rotas migratórias, em terras brasileiras, gere um lucro de US$ 2 bilhões – aproximadamente R$ 10,3 bilhões por ano. Globalmente falando, esse tipo de crime só fica atrás do tráfico de drogas e de armas.
Por ser uma atividade clandestina que, muitas vezes, escapa da fiscalização de órgãos competentes, especialmente nas estradas e fronteiras do País, não há um número real sobre esse mercado criminoso. A Renctas acredita que 38 milhões de animais silvestres sejam retirados do seu habitat natural, todos os anos, no Brasil.
Falta de penas mais rigorosas
Raquel Machado, fundadora e presidente do Instituto Libio de Proteção à Natureza, alerta que há um significativo déficit de fiscalização em nosso país, especialmente nas rodovias e fronteiras. “No entanto, acredito que o maior problema seja a falta de penas mais rigorosas para quem caça ou retira animais silvestres da natureza para fins comerciais, de forma ilegal”, acredita.
Ela ressalta que, no caso do tráfico de animais silvestres, as penalidades são preconizadas pela Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998), que tipifica as condutas que lesam o meio ambiente. O artigo 29 trata da venda e sua exposição ilegal, exportação, aquisição, guarda e manutenção em cativeiro ou em depósito, além da utilização ou transporte de espécies da fauna brasileira, nativa ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização do órgão competente ou em desacordo com a autorização obtida. As penas envolvem detenção de seis meses a um ano, além de multa.
Raquel destaca que o mesmo artigo expõe uma pena de reclusão de um a três anos e multa para quem guarda, mantém em cativeiro ou depósito, utiliza ou transporta espécies da fauna silvestre, sendo ela nativa ou em rota migratória, apreendida durante ação fiscalizadora, quando tem origem, no todo ou em parte, do exterior.
Ampliação das penas
“Na Câmara dos Deputados tramita o Projeto de Lei – PL nº 135/21, que visa à ampliação das penas para o crime de tráfico de animais, aumentando a pena de reclusão entre dois e cinco anos, além de multa”, revela a especialista.
Ela complementa que, conforme a Agência Câmara de Notícias, a nova pena será aplicada contra quem matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécies locais ou em rota migratória, sem a devida permissão legal. “A punição também será adotada em casos de introdução ou venda de espécies exóticas sem amparo legal”, conta.
Ameaças
Para a presidente do Instituto Libio, a combinação dessas medidas – mais fiscalização e penas mais severas – pode contribuir para o combate ao comércio ilegal de animais silvestres no Brasil, mais significativamente.
“Aves, répteis, primatas e peixes ornamentais são os mais visados e vendidos como animais de estimação exóticos, ingredientes para a medicina tradicional ou para outros fins lucrativos. Essa atividade ilegal é uma ameaça para a nossa biodiversidade, mas também tem seu lado criminoso, por estar associada a certas práticas como lavagem de dinheiro, corrupção e violência”, sublinha Raquel Machado.
Ela comenta sobre um caso mais recente, envolvendo uma famosa modelo e influenciadora digital, “que teve dois micos-leões apreendidos em sua casa no mês de janeiro, depois de expô-los em uma rede social, culminou na investigação e prisão de uma quadrilha de traficantes de animais, que seria comandada por um bombeiro militar no Rio de Janeiro”.
Danos à biodiversidade
A presidente do Instituto Libio reforça que a retirada de animais silvestres da natureza também causa sérios danos à biodiversidade: “O tráfico da nossa fauna provoca um impacto sobre as populações de espécies; desestabiliza nossos ecossistemas; traz riscos de disseminação de doenças zoonóticas, que são transmitidas entre animais e humanos, a exemplo da gripe aviária, entre outros problemas ambientais e de saúde pública”.
Meios de transporte
Raquel Machado afirma ainda que “quem pensa que, no Brasil, o tráfico de animais silvestres ocorre apenas por via terrestre, como carros, caminhões ou ônibus, atravessando as rodovias e fronteiras de forma ilegal, está enganado.”
Segundo ela, há casos de contrabando por via aérea. “Geralmente, o traficante esconde os ovos das aves e até mesmo animais vivos em bagagens, malas ou no próprio corpo”, conta.
E complementa: “Eles também podem ser levados como cargas em voos comerciais ou em aeronaves particulares”, cita.
A fundadora do Instituto Libio avisa ainda que o contrabando da fauna silvestre brasileira também é realizado por via marítima, em navios de carga, pequenas embarcações ou escondida em contêineres. “Já registramos situações de transporte via Correios, de animais ocultos em pacotes e caixas”.
Ela reforça que “esse tipo de tráfico tem sido bastante disseminado na internet, por meio de sites e redes sociais, pelos quais os animais são anunciados e vendidos online. Na maioria das vezes, eles são disfarçados como outros produtos ou mercadorias”, alerta.
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Medidas necessárias
Em sua visão, o Brasil precisa urgentemente de uma legislação mais rigorosa; investimentos em fiscalização das fronteiras e nos principais pontos de entrada e saída do país, destinando mais recursos financeiros e tecnológicos para os órgãos responsáveis pela fiscalização, como o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). “O ideal seria aumentar o número de agentes fiscais, equipamentos e tecnologias que possam ser usadas no combate ao tráfico de animais”, pontua Raquel Machado.
“Outra medida, que o Instituto Libio já promove com alunos em idade escolar, envolve a educação e a conscientização das pessoas, além de campanhas mais assertivas sobre os impactos negativos para nossa biodiversidade e meio ambiente”, sugere a presidente da instituição.
Reservas
Raquel Machado destaca que o Instituto Libio possui reservas em São Paulo, Mato Grosso do Sul e Pará, que acolhe animais vítimas do tráfico e maus-tratos no Mantenedor de Fauna Silvestre no interior do Estado de São Paulo.
“Os animais que podem ser soltos na natureza são submetidos a um processo cuidadoso de reabilitação, conjuntamente com nossos parceiros, para depois serem soltos de forma branda, de volta ao seu meio ambiente. Porém, muitos desses animais que não têm condições de soltura na natureza, são mantidos no Mantenedor com o objetivo de terem uma qualidade de vida mais digna”, conta.
Para a fundadora da instituição de proteção à natureza, também é urgente implantar políticas públicas de cooperação com outros países, de forma integrada, compartilhando informações e boas práticas: “Nós também incentivamos a denúncia de casos suspeitos, garantindo a proteção de quem denuncia, além de investimentos na influência e cobrança para formulação e implementação de políticas públicas voltadas à conservação e manejo sustentável dos recursos naturais, com o objetivo de reduzir a pressão sobre as populações de animais silvestres e desestimular o comércio ilegal de espécies brasileiras”, afirma.
Caso triste
Um dos casos mais tristes do Instituto Libio envolve uma fêmea macaco-prego, vítima de maus-tratos: “Vovó Elza viveu 40 anos acorrentada, mas foi resgatada e encaminhada para o nosso mantenedor, chegando aqui super debilitada e não devia pesar mais do que um quilo. Ficou internada alguns dias e, aos pouquinhos, nós fomos cuidando dela, fornecendo uma nutrição adequada, com alto valor energético. Ela foi se recuperando e ainda está conosco, há uns quatro anos. Na cinturinha dela não tem pelo, por causa da corrente que ficava nela. Uma história realmente muito triste, mas agora ela está bem”, relatou Raquel Machado à Revista A Lavoura.
Como denunciar
Para denunciar casos reais ou suspeitos de tráfico de animais, o Instituto Libio informa os seguintes contatos:
- Ibama
Telefone: 0800 061 8080 (“Linha Verde” gratuita, de segunda a sexta-feira, das 7 às 19 horas)
- Polícia Ambiental: Em alguns Estados brasileiros, existem delegacias especializadas em questões ambientais. Também há contatos locais via sites das secretarias estaduais de meio ambiente ou das polícias militares.
- Disque-Denúncia: Pelo número 181, a pessoa pode fazer uma denúncia de forma anônima, mantendo sua identidade em sigilo.
- No link institutolibio.org.br/denuncia do Instituto Libio, estão publicados vários telefones correspondentes aos órgãos competentes por Estado.
Fonte: Instituto Libio de Proteção à Natureza
Breves e tristes histórias dos animais regatados
- Vovó Elza – Macaco-prego (Spajus apella)
Vovó Elza é uma macaquinha idosa que passou mais de 40 anos de sua vida com alguém que a mantinha presa por uma corrente amarrada em sua cintura.
Ela carrega essas marcas até hoje. Chegou ao Libio depois que a família decidiu enviá-la para um Centro de Triagem e Reabilitação de Animais Silvestres.
Atualmente, Vovó Elza vive em um recinto amplo do instituto com outros macacos-pregos. Sua alimentação e cuidados veterinários que recebe no Libio proporcionam a ela uma vida melhor daquela teve no passado.
Seu ambiente também foi preparado para oferecer os estímulos ambientais necessários, otimizando sua qualidade de vida.
- Dodó – Arara-vermelha (Ara chloropterus)
Dodó é uma arara-vermelha que sofreu maus-tratos pelo tráfico, ela não voa e é cega dos dois olhos.
O transporte de animais que alimentam o tráfico é muito cruel, ficam em locais muito pequenos, sem água ou comida e ,muitas vezes, são mutilados para fazer menos barulhos e não chamar atenção.
Por essas razões, Dodó teve seus dois olhos queimados com cigarro, e ficou cega.
Hoje, ela vive em um recinto menor no Libio para não ter risco de queda, compartilhando-o com uma arara-canindé que também teve um dos olhos queimados, usufruindo dos cuidados para que tenham uma vida digna que merecem.
Saiba de mais histórias de animais resgatados pelo Libio no site do instituto https://institutolibio.org.br/