Estudo indica que, na região, ao mesmo tempo em que criadores de caprinos e ovinos vêm na onça uma ameaça ao seu modo de vida e sobrevivência, eles também reconhecem, em sua maioria, que elas têm direito à vida como qualquer outra espécie
Um estudo desenvolvido no programa de Pós-graduação Interunidades em Ecologia Aplicada (Esalq/Cena) da USP em Piracicaba investigou as relações que pessoas estabelecem com a fauna silvestre, com foco nas onças-pintadas (Panthera onca) e onças-pardas (Puma concolor), no semiárido do nordeste do Brasil, em especial na Caatinga.
“Nosso foco foi uma região de Caatinga, decretada como mosaico de unidades de conservação em Abril de 2018 – Parque Nacional e Área de Proteção Ambiental do Boqueirão da Onça”, conta a autora do projeto, engenheira agrônoma Claudia Martins.
Segundo a pesquisadora, no sertão é recorrente tratar as interações com a fauna silvestre do ponto de vista utilitarista, dependendo do grupo em causa, para consumo, medicina, ornamentação ou pet.
“A caça, apesar de ser ilegal no Brasil, é comum também no sertão, é aceita e às vezes, necessária, principalmente para pessoas e comunidades que não têm acesso a proteína animal por questões financeiras”.
De acordo com Martins, a caça é vista como uma relação predador-presa, onde o homem é o único predador das onças, que são animais carnívoros predadores do topo da cadeia em ambientes naturais, e compete com estas quando se trata de caçar tatus, veados, cotias, pacas, caititus e outros.
“Minha linha de pesquisa agregou outras variáveis além das variáveis socioeconômicas, para justificar o declínio das populações de onças (e suas presas)”, complementa.
Convivência
Da vivência que a pesquisadora tem na região, ela afirma que ao mesmo tempo em que criadores de caprinos e ovinos vêm na onça uma ameaça ao seu modo de vida e sobrevivência, caçam onças por retaliação à predação, também reconhecem, em sua maioria, que elas por serem carnívoras, precisam comer e alimentar seus filhotes, e têm direito à vida como qualquer outra espécie.
“Além disso, esses animais têm visto suas áreas de vida diminuírem muito em resultado de atividades humanas, como desmatamento e fragmentação de habitats, mineração, queimadas, novos usos do solo e do território para instalação e operação de complexos eólicos e fotovoltaicos, com supressão de vegetação e abertura de estradas em lugares remotos”, detalha Claudia.
A pesquisa inicia identificando as motivações por trás do abate de animais silvestres. “Há uma lista de motivos que levam a esse abate, sejam sentimentos de medo, de percepção de risco devida à proximidade ou características da espécie, de retaliação por dano à sua propriedade”.
De acordo com a pesquisadora, este comportamento se dá por “desconhecimento ou desacordo com instituições que fazem manejo de fauna silvestre ou conflito com outras pessoas, crenças errôneas sobre biologia e ecologia das espécies, suporte ou estímulo social para comportamento de caça, hábitos ou costumes que mantêm essa relação de direito da espécie humana sobre a vida de outras espécies”.
Amigos da onça
Claudia integra, há alguns anos, a equipe do único programa de conservação de onças-pintadas e onças-pardas no nordeste do estado da Bahia (Programa Amigos da Onça). “Temos feito um esforço de interferir, a partir da vontade expressa dos residentes na região, em hábitos culturais ligados ao manejo extensivo dos rebanhos e às interações com a fauna silvestre”.
Ela conta que assim foram construídos, em duas comunidades do Boqueirão e em parceria com a Tetra Pak® Montemor, SP, 18 currais à prova de ataque de onça, como a materialização do compromisso do criador em não deixar os seus animais dormir ao relento.
“Durante a noite ficam totalmente expostos a várias ameaças inclusive ao ataque do predador, que é furtivo e mais ativo no horário mais fresco”, destaca. E segundo a agrônoma, a ação já traz indicativos de mudança. “Essa mudança é efetiva na proteção dos rebanhos, e esse cuidado com as pessoas que partilham território com as onças reduz sua sensação de vulnerabilidade e facilita a mudança de comportamento e atitudes”.
Ética
É este contexto de trabalho e pesquisa que levou Claudia a expor vários desafios éticos, durante o curso de Verão “Ethics in a global context”, realizado em junho de 2019, na Universidade de Lucerne, Suiça.
“Podemos afirmar que nossa sociedade atual, que almeja cumprir os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), é ética quando mantém quadros legais frágeis que consentem com a implantação de complexos de geração de energia de base renovável em áreas naturais e não em regiões já sujeitas a algum grau de degradação?”, questiona a pesquisadora.
Durante a permanência no país europeu, Claudia pode dialogar com colegas suíços, irlandeses, norte-americanos, alemães, nigerianos, palestinos, indianos, trabalhando nas áreas de saúde pública, ciência política, relações internacionais, música, educação, engenharia da computação, assistência social, agricultura e conflitos-humanos-fauna silvestre. E questionou-se sobre qual é a ética possível para conciliar a conservação da natureza com a qualidade de vida de todos os humanos no Planeta?
“Não trouxe respostas do curso de Verão, mas me senti honrada e privilegiada por pode mostrar fora das fronteiras do Brasil um Brasil menos badalado e frequentemente subestimado, em relação às riquezas da sua biodiversidade e grupos sociais e suas culturas, como é a Caatinga”.