O uso do fogo na agricultura não é caso de polícia, e sim de política. Política de desenvolvimento humano e social. Alternativas existem. Programas para implantá-las, não
O Brasil chegou a dezembro com cerca de 180 mil queimadas detectadas por satélite, desde o início de 2023! Mais da metade na Amazônia. Todo ano é assim: governos emitem decretos de emergência, proíbem as queimadas e o uso do fogo na seca. As fiscalizações, multas, diatribes governamentais, catilinárias ambientalistas e terrorismo midiático são tão eficientes contra queimadas na Amazônia quanto resoluções da ONU para o Oriente Médio.
Ao contrário do desmatamento, as queimadas da Amazônia poderiam ser reduzidas rapidamente. A maioria dos produtores rurais não pratica queimadas regularmente. Sem acesso a novas tecnologias, o fogo é usado, sobretudo, por agricultores fa miliares descapitalizados. A adoção dessas alternativas ao uso do fogo depende da regularização fundiária na Amazônia: dar o título de propriedade a mais de meio milhão de produtores, levados e lá instalados por sucessivos governos. Isso na Amazônia, more than ever, está fora de questão. É politicamente incorreto. Esse foi o mote brasileiro e de países ricos na COP28 em Dubai: floresta, sim; humanos, não!
Em 2023, Manaus sofreu com a fumaça das queimadas, assim como outras cidades amazônicas. A fumaça provoca problemas respiratórios, aumenta o risco de acidentes nas estradas, a emissão de poluentes, os prejuízos ao tráfego aéreo, os danos à biodiversidade, além de causar degradação da qualidade de vida em amplas regiões. Não poderia ser diferente: a média anual de queimadas no Brasil tem sido de 219 mil nos últimos 25 anos, e a maior parte ocorre na Amazônia. Democraticamente, em geral, a fumaça atinge pobres e ricos.
Em tese, para quei mar, é preciso autorização estatal. “O emprego do fogo mediante Queima Controlada depende de prévia autorização, a ser obtida pelo interessado junto ao órgão do Sistema Nacional do Meio Ambiente…”, reza o artigo 3º do Decreto nº 2.661/98, do presidente Fernando Henrique Cardoso. Mais de 200 mil queimadas por ano seriam atos ilegais ou irregulares, sem autorização. Haja infratores! Como no desmatamento, propostas para reduzir queimadas só funcionarão se resultarem de uma compreensão e qualificação desse processo, e não só de sua criminalização.
Desde 1998, o máximo absoluto de queimadas no Brasil ocorreu em 2007: cerca de 394 mil, no mandato do presidente Lula, tendo Marina Silva como ministra do Meio Ambiente. Como em 2021, provavelmente, o Brasil terá um número abaixo da média em 2023, agora também sob Marina Silva.
O sistema de monitoramento de queimadas existe há décadas no Brasil e teve início com os satélites NOAA-AVHRR. Nos úl timos 25 anos, os pontos de calor, fogos ativos ou queimadas são detectados diariamente na passagem vespertina do satélite Aqua M-T, do sistema orbital de referência do Lance-Firms, da Nasa, com dados disponibilizados pelo Inpe.
O bioma Amazônia representa metade do território nacional e, como sói acontecer, lidera com 52,6% das queimadas em 2023, seguido pelos biomas Cerrado (27,1%), Caatinga (10,3%) e Mata Atlântica (6%). Foram 94.471 queimadas registradas na Amazônia, com uma redução de 15% em relação a 2022. No Cerrado, a redução foi de 12%. Já na Caatinga, o aumento foi de 41%. A explosão de queimadas e incêndios ocorreu no Pantanal: mais de 324%, de 1.444 queimadas em 2022 para 6.119 em 2023.
Em relação aos incêndios ocorridos em 2020 no Pantanal, a diferença está no silêncio da mídia brasileira e internacional. São indulgentes com o crescimento do fogo neste ano, enquanto em 2020 comportaram-se, com alarido, como incendiárias da informa ção? Também foram omissas com os megaincêndios do Canadá. Esse país perdeu, em cinco meses, uma área florestal calcinada superior ao desmatado na Amazônia nos últimos 15 anos. Talvez uma gentileza para ajudar a imagem e o discurso de participantes canadenses e brasileiros na COP28.
Em 2023, dos cinco Estados com mais queimadas, três estão na Amazônia e dois estão no Nordeste. O Pará lidera com 39.510 queimadas, número equivalente ao de 2022. Em segundo lugar vem Mato Grosso, com 20.671, uma redução expressiva de 27%. Em terceiro lugar está o Amazonas, com 19.499, 7% menos que em 2022. O recorde nacional de aumento nas queimadas em 2023 também está na Amazônia: o Amapá passou de 984 para 2.508 queimadas, e Roraima passou de 1.021 para 2.490. Crescimentos de 154% e 141%, respectivamente. Na quarta e na quinta posição em 2023 estão Maranhão, com 12.458 queimadas (+3%), e Piauí, com 11.103 (+18%).
Dos dez municípios com maior número de queimada s em 2023, nove estão na Amazônia: três no Amazonas, três no Pará, dois em Mato Grosso e um em Rondônia. São eles, em ordem decrescente de queimadas: Altamira (PA), São Félix do Xingu (PA), Porto Velho (RO); Lábrea (AM), Poconé (MT), Apuí (AM), Portel (PA), Novo Aripuanã (AM), Corumbá (MS) e Colniza (MT).
Em regiões tropicais, o primeiro passo no entendimento desse fenômeno é não confundir incêndio com queimada. Incêndios predominam em regiões temperadas. Fogo indesejado, fora de hora e lugar, os incêndios destroem patrimônio público e privado. São difíceis de controlar. Aqui, muitas fazendas mantêm brigadas anti-incêndios treinadas e equipadas para atuar. Há incêndios criminosos ou provocados de forma irresponsável por quem lança cigarros ou garrafas na vegetação, abandona fogueiras, deixa velas acesas após rituais religiosos, queima lixo etc. E podem ser causados por raios. Com seca severa e vento, eles se alastram e são difíceis de cont er, como no Pantanal e no Cerrado.
Já a queimada é uma tecnologia agrícola, amplamente utilizada na região intertropical em agriculturas tradicionais. O mapa do Firms, da Nasa, de 3 de dezembro de 2023, mostra a grande concentração de queimadas na África, sobretudo no Sahel, em Moçambique e na Bacia do Congo.
Na América do Sul, além do Brasil, esse recorte temporal de um dia (3 de dezembro de 2023) mostra a concentração de queimadas no Paraguai, Bolívia, Colômbia e Venezuela. Os recordes de aumento das queimadas estão nas Guianas. No Suriname, o fogo cresceu 413% em relação ao ano passado. Na última colônia, a Guiana Francesa, o crescimento foi de 226%. Na Guiana, em pleno desenvolvimento econômico, as queimadas cresceram 393%, sobretudo na região próxima ao Brasil, cobiçada pela Venezuela.
No uso do fogo na agricultura, o produtor decide a hora e o lugar de queimar, de forma controlada e desejada. Agricultor não queima por malvadeza. Ele o faz para renovar pastagens, combater carrapatos, eliminar a palha da cana-de-açúcar, diminuir resíduos vegetais de cultivos e derrubadas de capoeiras, combater pragas e doenças etc. O fogo é uma prática do Neolítico, herdada essencialmente dos índios (coivara). Povoadores europeus a adotaram na América Latina. A prática é tradicional na África. É assim na Amazônia.
O Governo apresentou na COP28 algum programa ou proposta para substituir queimadas por tecnologias? Alguém buscou financiamentos para isso no BNDES, no Fundo Amazônia ou na COP28?
A Embrapa Territorial analisou os dados do Programa de Monitoramento de Queimadas de 2019, das áreas mapeadas pelo Programa de Monitoramento do Desmatamento (Prodes), do Inpe, e dos imóveis rurais registrados no Cadastro Ambiental Rural: 95% das queimadas ocorrem em áreas já desmatadas. As outras, em áreas de vegetação aberta do bioma Amazônia: locais urbanos e periurbanos; infraestruturas energético-min eradoras etc.
A Embrapa dispõe de tecnologias agrícolas alternativas para substituir com vantagens agronômicas e ambientais a prática das queimadas: a mecanização gerencia os resíduos sem recurso ao fogo; o manejo de pastagens aumenta a disponibilidade forrageira; o uso de carrapaticidas elimina a queima para controlar carrapatos etc. Em São Paulo, o fogo era utilizado em 5 milhões de hectares para eliminar a palha da cana-de-açúcar antes da colheita. Hoje, com a mecanização da colheita, não há mais queimadas.
Adotar tecnologias alternativas às queimadas exige regularização fundiária, assistência técnica e crédito rural específico para adquirir máquinas e equipamentos. É preciso investir em infraestrutura de cercas, aceiros, silos, manejo de pastagens etc. E por vários anos… O uso do fogo na agricultura não é caso de polícia, e sim de política. Política de desenvolvimento humano e social. Alternativas existem. Programas para implantá-l as, não.
Alguma ONG ambientalista, das muitas vivendo da Amazônia, buscou fundos para levar essas tecnologias aos agricultores? Algum país desenvolvido alocou milhões de dólares a um programa de redução das queimadas pela adoção de tecnologias alternativas? Só clamores por fiscalização e repressão para desantropizar áreas rurais da Amazônia. O governo apresentou na COP28 algum programa ou proposta para substituir queimadas por tecnologias? Alguém buscou financiamentos para isso no BNDES, no Fundo Amazônia ou na COP28? Isso não ajudaria a preservação florestal? Ou as queimadas seriam uma questão ambiental secundária na Amazônia?
O projeto para a Amazônia, cada vez mais claro e em implantação, é outro. São as políticas de eugenismo ambiental. A meta é a desantropização, e não o desenvolvimento humano e social. Eliminem-se os agricultores a ferro e fogo. E terminarão desmatamentos e queimadas! Essa seria a solução final? Desocupar a Ama zônia? Floresta, sim; humanos, não?
Em meio à fumaça, as renas e o Papai Noel terão dificuldades em localizar os filhos dos agricultores desintruídos e de quase 1 milhão de pequenos produtores na Amazônia. Apesar de Belém estar no Pará, mais uma vez essas crianças não receberão seus presentes de Natal, na rica e miserável Amazônia.