A resposta parece simples: para se ter boa saúde! Uma alimentação adequada evita doenças e nos deixa mais preparados para as atividades cotidianas.
Mas, sabemos nos alimentar de maneira apropriada? Por que precisamos de uma boa e equilibrada alimentação? Como selecionar nossos alimentos?
Para responder essas e outras frequentes perguntas, a partir desta edição, A Lavoura terá uma nova e frutífera coluna: “Alimentação & Nutrição”. Pretendemos, além de trazer as novidades, abordar, de forma ampla, o universo dos alimentos, com o objetivo de contribuir para melhorar a qualidade de vida e a saúde dos leitores.
No Brasil e em muitos outros países, a obesidade, por exemplo, já é um problema de saúde pública. Isso porque a população tem optado muito mais pela comida industrializada em detrimento do consumo de alimentos naturais e frescos como frutas, legumes e verduras, cereais integrais e proteínas minimamente processadas.
Para a estreia da coluna, convidamos a renomada e respeitada nutricionista Bia Rique, especialista em psicossomática contemporânea e chefe do Serviço de Nutrição da 38ª enfermaria da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, com dois livros publicados sobre o tema: “Novos conceitos de Alimentação Saudável e Tabela de Equivalências” e “Comer para emagrecer — Uma filosofia nutricional”
Entrevista • Bia Rique
Qual a principal mudança de paradigma na alimentação dos últimos anos?
Há 20 anos, a maior preocupação relacionada à alimentação era a fome. Hoje, o foco mundial, em qualquer país do mundo, é a obesidade. Os países pobres sofreram o que se denomina “transição nutricional”, ou seja, antes de erradicar completamente a fome, começaram a conviver com o problema da obesidade. A principal mudança de paradigma foi o advento dos alimentos processados e a pandemia da obesidade.
Você poderia explicar melhor esse fenômeno da transição nutricional?
Transição nutricional é quando, num mesmo contexto, continua existindo fome, ao mesmo tempo em que acontece, também, o problema da obesidade. Esta é a realidade de muitos países, inclusive a do Brasil, em cujas regiões Norte e Nordeste ainda há milhares de pessoas que passam fome e, simultaneamente, convivem com a obesidade, decorrente do consumo excessivo de alimentos processados.
Então, a transição nutricional é um fenômeno diretamente associado à má distribuição de renda?
Não é só um reflexo da má distribuição de renda, porque, mesmo em países desenvolvidos, como os Estados Unidos, por exemplo, que têm melhor distribuição da renda, ainda convivem com a fome associada à obesidade. Mas esta é uma fome que acomete pessoas obesas, uma fome decorrente de desigualdade do nível de instrução e até da renda, mas camuflada pela obesidade em massa. São pessoas que, mesmo obesas, estão mal nutridas. São adultos, adolescentes e até mesmo crianças, muito acima do peso ideal, em decorrência da mudança dos hábitos alimentares, ocorrida nos últimos anos. A redução da ingestão de alimentos naturais e saudáveis, como carboidratos complexos e fibras, por uma dieta rica em gorduras, açúcar e alimentos refinados, é um dos fatores responsáveis por esta epidemia mundial.
A representação da pirâmide alimentar foi uma conquista importante no final do século passado. Desde que foi elaborada, sua representação mudou muito?
A pirâmide alimentar é renovada ou ligeiramente modificada a cada cinco anos em decorrência da renovação das “Guidelines for American”, que ocorre a cada cinco anos. Em meu primeiro livro — “Novos Conceitos de Alimentação Saudável e Tabela de Equivalências”, de 2008, traduzi essas ‘guidelines’ para americanos. É um livro com base científica, editado pela Tecmedd, que se fundiu com a editora Novo Conceito. Nesse livro, eu traduzi as guidelines de 2005.
A pirâmide não era renovada desde 1992. Como as guidelines de 1995 e de 2000 não trouxeram mudanças significativas. Não houve renovação da pirâmide, que, até 2004, era um desenho, um ícone, com uma pirâmide em linhas horizontais, em cuja base estavam representados os alimentos que as pessoas mais poderiam consumir e, no topo, o que elas menos deveriam comer.
Mas uma pesquisa de marketing revelou que a população americana não entendia a pirâmide. Após pesquisas, chegou-se à conclusão que uma pirâmide com linhas verticais era mais interessante, porque, na verdade, todos os alimentos são igualmente importantes. Desta forma, na nova pirâmide de linha vertical, cuja base é maior, há vários triângulos dentro de um mesmo triângulo. Por exemplo, os carboidratos que estão representados na base, podem ser mais consumidos, ao contrário dos que estão localizados mais acima. Na nova representação, o triângulo dos carboidratos é maior e mais significativo do que o triângulo das gorduras.
Quais as principais mudanças a partir das Guidelines de 2005?
Como as guidelines de 2005 trouxeram muitas mudanças e novos conceitos — daí o título do meu livro — novidades significativamente diferentes e relevantes, houve a necessidade de se fazer essa nova pirâmide para incorporar os novos conceitos. Outra grande diferença na pirâmide de 2005 é que ela deixou de ser um mero desenho para consulta e passou a ser um portal. Quem acessa o portal mypyramid.gov pode navegar 48 horas e o conteúdo não acaba. Então, a maior mudança de paradigma da pirâmide de 2005 não foi a troca do formato do horizontal para o vertical. A guinada mais significativa foi, não só transformar o desenho para uma imagem em 3D, mas agregar um portal que disponibiliza informações de todos os conhecimentos possíveis e imagináveis na área da nutrição: das doenças, à área de Saúde Pública. Em 2010, não houve grande mudança nas guidelines.
Quais os principais mitos derrubados nos últimos tempos?
Na verdade, não se derrubou nenhum mito, porque a Ciência não muda tanto quanto as pessoas imaginam, ao contrário de quem estuda e acompanha. A maior mudança foi em relação às gorduras líquidas, porque foi constatado que o conceito de gordura ruim e boa era de difícil compreensão. Abordaram também a questão dos açúcares adicionados, como o xarope de glicose, que fornecem calorias adicionais sem a função nutricional dos açúcares naturais, como a frutose, por exemplo.
Mas, a grande mudança, em minha opinião, são as calorias discricionárias, ou seja, as “calorias vazias”, disponíveis nos alimentos, e que podem ser consumidas ao longo do dia. Antes, as nutricionistas recomendavam apenas o que era ideal para se consumir no dia. Hoje, recomenda-se a quantidade de calorias com uma margem a mais, ou seja, que sobram depois de uma pessoa suprimir a sua necessidade calórica diária. No meu segundo livro — “Comer para emagrecer”, criei o conceito de “abusos programados”.
Explique melhor o que são calorias discricionárias?
Cada indivíduo tem uma necessidade energética individual, como se fosse um orçamento financeiro. Este orçamento pode ser dividido entre “itens essenciais” e “extras”. Os “itens essenciais” são as quilocalorias que se precisa para atender as necessidades nutricionais. Alimentos pobres em gorduras e sem açúcares adicionados atendem as necessidades nutricionais com o mínimo possível de quilocalorias.
Assim, sobram algumas quilocalorias “extras” para atingir as necessidades energéticas, fornecidas por “guloseimas”, gorduras sólidas, açúcares adicionados, álcool, ou em maior quantidade de alimentos de qualquer grupo.
Em geral, a quantidade de quilocalorias discricionárias permitida é pequena, entre 100 e 300 kcal, especialmente para pessoas não muito ativas. Há quem, na hora do almoço, já as usou todas. Outros, as utilizam em alimentos dos grupos principais, consumindo queijos gordurosos, leite integral etc. Alguns alimentos têm zero de quilocalorias discricionárias, como o leite e iogurte desnatados, as carnes magras, os vegetais e frutas e, também, alguns cereais, por exemplo. Outros são compostos, parcialmente, por quilocalorias discricionárias, como leite semidesnatado e integral. Por último, existem aqueles compostos somente por quilocalorias discricionárias, como os refrigerantes, as bebidas alcoólicas, as gorduras sólidas, o açúcar refinado etc. São conhecidas popularmente por “calorias vazias”. Ou seja, podem engordar sem muito nutrir.
O que você chama de “abusos programados”?
Acho que a dieta deve também incluir prazer. De nada adianta fazer dieta e ficar infeliz. O “abuso programado” é não se sentir culpado de, eventualmente, sair da dieta de forma planejada. Se você tem na agenda um super jantar na casa de amigos, planeje para comer a sobremesa nesse evento especial. Há mulheres que dependem do chocolate para atravessar a TPM. Então, deve se programar para comer o chocolate nessa fase. Precisamos descobrir quais são os alimentos que realmente nos dão prazer, aqueles impossíveis de abrirmos mão, para que o abuso programado valha à pena.
O que você recomendaria como fundamental para a maioria das pessoas que não dispõem de tempo para o preparo de alimentos saudáveis na residência?
Minha resposta tem muito a ver com o perfil editorial da revista A Lavoura, porque acho que a maior mudança necessária para a humanidade é melhorar a alimentação. Já é hora de a nutrição ser um assunto de Saúde Pública. É preciso que seja feito um esforço conjunto do Governo e a Sociedade (profissionais, empresas do setor, imprensa etc), para uma maior conscientização dos benefícios de uma alimentação adequada.
Em relação ao Governo, seria a instituição de políticas públicas que incentivem a produção de alimentos mais saudáveis e sustentáveis. Os orgânicos são bons exemplos de uma agricultura mais natural, já que não utilizam produtos químicos. Só dessa forma teremos uma oferta maior de alimentos saudáveis.
Para completar, é urgente uma campanha de Saúde Pública que ensine as pessoas a comerem melhor, de forma mais equilibrada e saudável. Assim, esses esforços conjuntos fariam com que a população passasse a se alimentar de maneira mais apropriada, a ingerir mais vegetais, frutas e cereais integrais, que são alimentos sabidamente benéficos para nosso organismo.
Vou além: deveria haver uma maior taxação para os alimentos não saudáveis, os processados e, em contrapartida, uma redução drástica no preço das frutas, legumes e vegetais, enfim, dos alimentos saudáveis, aumentando, assim, sua acessibilidade para a população.
É fundamental ter dietas diferentes conforme a faixa etária ou existe uma alimentação básica que deve ser seguida em qualquer idade?
As recomendações devem ser personalizadas, mas não em função da idade, porém, conforme a história clínica de cada um.
Os alimentos funcionais viraram uma febre. Quinoa, amaranto, linhaça, chia, ou tudo misturado na “ração humana”. Esses alimentos são indicados para todas as pessoas ou há restrições?
São recomendados para a maioria das pessoas, mas a nutrição funcional não deve ser encarada como nutrição à parte ou suplementar, como vem aparecendo na imprensa. É como se a gente falasse que a cardiologia preventiva fosse uma cardiologia à parte, diferente. Todo cardiologista deve ter uma visão e atuação preventivas, assim como o dermatologista precisa fazer a prevenção do câncer de pele. Toda boa nutricionista deve incluir alimentos funcionais na dieta de seus pacientes, a partir de seu histórico e quadro individuais.
Se você tivesse que dar apenas um conselho sobre alimentação, qual seria?
Aumentem o consumo de vegetais, frutas e legumes frescos e reduzam o consumo de alimentos processados.
De preferência orgânicos?
Isso não é o mais importante. Até porque sabemos que os alimentos orgânicos ainda não estão ao alcance da maioria da população, pela escassez da oferta ou preço mais elevado. Mas, não podendo ser orgânico, que sejam os vegetais e as frutas frescos disponíveis no mercado mais próximo.