“Na esfera específica do imóvel rural, tem o proprietário a obrigação de aproveitar sua terra racional e adequadamente, utilizando-a, contudo, de forma a preservar o meio ambiente e os recursos naturais nela existentes, com observância das leis que regulam as relações de trabalho e uma exploração que favoreça o seu bem-estar e os dos trabalhadores que nela trabalhem”
Sou um sertanejo, corruptela do que os portugueses chamavam das pessoas que habitavam o “desertão”, ou o “sertão”, ou aquelas áreas que ficavam longe da faixa banhada pelo mar. Precisamente, sou de Propriá, estado de Sergipe, cidadezinha que fica aproximadamente à 100 quilômetros de Aracajú, sua Capital, e embora se localize às margens do Rio São Francisco, um quilômetro depois da faixa ribeirinha, é terra seca. Em 1966, fiz o vestibular para a então Faculdade Federal de Direito do Estado de Sergipe, em Aracaju. Dos 50 candidatos aprovados, eu era o único do interior: o sertanejo matuto.
Em 1970, então no 4º ano de direito (na época, o conteúdo de direito era dividido em 5 anos. Quem rodasse em 2 matérias repetia o ano), a convite de meu professor de direito civil, ouvi uma palestra do Dr. Fernando Pereira Sodero sobre o Estatuto da Terra.
Foi um choque!
É que meu pai tinha algumas tarefas de terras (medida regional de terra. Três tarefas correspondem a um hectare) no outro lado do Velho Chico, no Município de Porto Real do Colégio, Alagoas. Isso porque nada do que ele disse se aplicava na região.
Mas a nova visão sobre a terra me marcou. E, dois meses depois de formado, em março 1972, vim conhecer a realidade agrária do Rio Grande.
E fiquei!
Assim, nestes 48 anos em terras gaúchas, como advogado, magistrado por quase 35 anos, professor universitário por quase 40 anos e autor de algumas dezenas de livros, em todos esses misteres, tenho procurado desenvolver o pensamento sobre o que efetivamente é necessário para que a terra tenha um bom uso.
E a função social da propriedade, ou a compreensão de que a terra rural, não se exaure tão só na visão do querer do proprietário, é o ponto forte desse conhecimento.
Não custa lembrar que, durante muito tempo, pairou na estrutura do direito pátrio a verdade de que a propriedade imóvel atingia seu ponto ótimo apenas satisfazendo o proprietário. O dogma, assim estabelecido, tinha como pressuposto originário a sustentação filosófica e política de que ela se inseria no direito natural do homem e, dessa forma, apenas nele se exauria. É o que se podia chamar de função individual ou privada da propriedade imóvel. Em decorrência disso, surgiu uma aceitação genérica no sentido de que o homem proprietário e a sua coisa, chamada terra, mantinham uma estreiteza de laços tão fortes, que esta última parecia ter vida pela transposição de sentimentos que aquele dedicava. Tamanha foi essa simbiose, que surgiu, ainda no campo do direito, a figura da legítima defesa da propriedade, e que bem poderia ser retratada nesta metáfora: o meu é tão meu, que se alguém tentar dele se apossar, eu revido, lesionando ou até matando, e me arvoro em ação legítima nesse agir.
A força dessa função privada ou individual da propriedade imóvel é explicada por sua continuidade tempo afora, eis que já plenamente admitida no direito romano, embora, lá, se buscasse proteger apenas a pretensão individual, e não a necessidade de alimentos e de emprego de mão-de-obra, pois estes fatores são contingências modernas no direito de propriedade.
Mas o princípio continuou na idade média, porque se adequava à estrutura feudal de dominação. Ser proprietário de terras nesse período era exercício de poder absoluto e, consequentemente, de submissão daqueles que nela moravam ou trabalhavam. A vontade do senhor de terras era o limite do direito de propriedade.
A Revolução Francesa, embora surgida com o propósito de modificar a estrutura asfixiante do domínio feudal, apenas serviu para mudar a titularidade da figura dominante: dos suseranos e clero, para o novos-ricos comerciantes e industriais, porque o exercício exclusivamente pessoal ainda continuou como função da propriedade imobiliária. O certo é que, por forças das ideias políticas revolucionárias e de certa forma inovadoras, a função privada da propriedade ganhou foro de obediência jurídica e se instalou no Código Civil francês que, por sua arquitetura legal, importância cultural da França na ocasião, ganhou mundo como verdade única.
E esse redemoinho externo encontra uma predisposição política de um País que, buscando crescer, importa conteúdo ideológico. E foi assim que ocorreu a inserção do art. 179 da Constituição do Império, que resguardou de forma absoluta o direito de propriedade, que se manteve inalterado na Constituição Republicana de 1891, no seu art. 72, § 17. Em outras palavras, a função individual ou privada da propriedade continuava plenamente presente, tanto que o art. 524 do Código Civil de 1916, o reproduziu ao assegurar ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, sem estabelecer qualquer limite no exercício de tais direitos.
Mas o questionamento de que havia algo mais entre a vontade do homem proprietário e sua terra começou a ser formulado ainda na idade média, mais precisamente no século XII, por Santo Tomás de Aquino, quando na sua Summa Contra Gentiles concluiu que cada coisa alcança sua colocação ótima quando é ordenada para o seu próprio fim. Surgia, aí, o embrião da doutrina da função social da propriedade. Evidentemente que, pela própria estrutura da igreja, como proprietária de terras, a ideia não logrou êxito.
Com as distorções econômicas e sociais geradas pelo desenvolvimento industrial dos séculos XVIII/XIX, é que, o repensar da terra como direito absoluto do proprietário, ganhou força e teve em Marx sua alavanca, quando, em 1848, publicou seu “O Capital”, onde questionou a possibilidade de a terra se constituir em direito individual, já que ela era um bem de produção. Em 1850, Auguste Comte, através de seu Sistema de Política Positiva, também se utilizou desse argumento para sustentar a necessidade de intervenção do Estado na propriedade privada por ter ela uma função social.
Diante da repercussão que essas ideias ganharam no mundo, a Igreja Católica voltou a repensar os ensinamentos de Santo Tomás de Aquino e admitiu como um de seus dogmas a sustentação de que a terra tinha uma função superior àquela de satisfação do proprietário, e, assim, iniciou pregação nesse sentido por intermédio da Encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, da Quadragesimo Anno, de Pio XI, Mater e Magistra, de João XXIII, continuando com João Paulo II, quando sustenta que a propriedade privada tem uma hipoteca social.
No campo específico do Direito, coube a Duguit o mérito inicial de havê-la sustentado. Porém, a doutrina só se transformou em princípio constitucional com a Constituição Mexicana de 1917, quando, no seu art. 27, o admitiu, seguindo-se a Constituição Alemã de Weimar, de 1919, que, magistralmente, no seu art. 157, declarou: a propriedade obriga. Outras constituições se seguiram, como a da Iugoslávia, de 1921 (art. 37), e do Chile, de 1925 (art. 10), e que, em atenção aos anseios por Cartas que reproduzissem a preocupação social, tomaram conta das democracias ocidentais. Hoje, pode-se dizer, sem qualquer resquício de erro, que a função social da propriedade é característica quase universal.
Entre nós, a Constituição de 1934 adotou o princípio, que se manteve sempre presente em todas as demais constituições que se lhe seguiram. Ocorre que, até a Constituição de 1969, a função social da propriedade foi apenas insculpida como princípio maior sem que, todavia, se lhe detalhassem o limite e a abrangência. Coube ao Estatuto da Terra, uma lei ordinária, no seu art. 2º, § 1º, a oportunidade de conceituá-la nestes termos:
“A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente:
- a) – favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias;
- b) – mantém níveis satisfatórios de produtividade;
- c) – assegura a conservação dos recursos naturais;
- d) – observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivam. ”
Já a Constituição de 1988, em vigor, expressamente declara como princípio que a propriedade tem função social, no art. 5º, inciso XXIII, quando trata dos direitos e deveres individuais e coletivos, mas inova em termos constitucionais, quando também o estende para os imóveis urbanos, art. 182, § 2º, ao estabelecer que a propriedade urbana cumprirá sua função social quando atender às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressa no plano diretor, além de diretamente conceituar sua amplitude para os imóveis rurais, art. 186, caput, ao prescrever que a propriedade rural atende a sua função social, quando, simultaneamente, segundo graus e critérios de exigência estabelecidos em lei, os requisitos de aproveitamento racional adequado, utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, observância das disposições que regulam as relações de trabalho e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Coube à Lei nº 8.629, de 25.02.93, detalhar, agora, os preceitos constitucionais. Esta matéria será estudada no capítulo que trata da reforma agrária.
Embora a função social da propriedade seja, hoje, no País, mandamento constitucional, o que ainda se observa é uma perseverante manutenção de seu conceito individual ou privatístico, numa intrigante distonia entre o direito positivado e a realidade social de sua aplicação, mesmo por aqueles que operam a ciência jurídica e sedimentam opiniões através da doutrina e da jurisprudência, como se o conceito do Código Civil de 1916 ainda vigorasse, e o novo Código não tivesse sofrido redimensionamento conceitual por força da Carta Constitucional vigente.
Pessoalmente, entendo que fatores externos ao Direito estão a exigir que o conceito individual ou privatístico de propriedade deva sofrer um questionamento profundo, pois, além dessa forma personalíssima de eficácia jurídica, existe uma obrigação latente e natural que acompanha a própria terra, e que pode ser bem sentida por realidades palpáveis, como a finitude da própria superfície terrestre aproveitável, o aumento imensurável de natalidade e aumento da perspectiva de vida a impor uma necessidade sempre crescente de alimentos, a imperiosa busca de colocação de mão-de-obra e o respeito aos aspectos ecológicos de proteção coletiva. Esses fatores não existiam quando da idealização do conceito pessoal do direito de propriedade. Mas estão aí, a exigir atenção e apanhamento pelo Direito
Cumprir os requisitos que abrangem o princípio da função social da propriedade é exigência ínsita a todo imóvel urbano ou rural no País. Por via de consequência, todo proprietário de bens imóveis, para que se diga titular desse direito, tem, antes, de atender àqueles dispositivos constitucionais, uma vez que a condição de satisfação social que acompanha o bem se traduz em obrigação superior para quem lhe é titular.
Na esfera específica do imóvel rural, tem, portanto, o proprietário a obrigação de aproveitar sua terra racional e adequadamente, utilizando-a, contudo, de forma a preservar o meio ambiente e os recursos naturais nela existentes, com observância das leis que regulam as relações de trabalho e uma exploração que favoreça o seu bem-estar e os dos trabalhadores que nela trabalhem.
Evidentemente, que ao estabelecer condições para que se entenda o imóvel rural cumprindo a sua função social, o legislador previu também sanções para o caso de seu descumprimento.
E a maior penalidade imposta é a desapropriação por interesse social, com a finalidade exclusiva de reforma agrária, conforme dispõe o art. 184 da Constituição Federal. Ou seja, por não atender a função social, o proprietário sofre intervenção da União que, respeitando o princípio do devido processo legal, da indenização prévia e justa, lhe retira a propriedade. Este é um tipo de desapropriação específica – para reforma agrária. Assim, a terra é tomada do proprietário pela desapropriação, por interesse social, e, no momento seguinte, redistribuída em parcelas menores para certos beneficiários catalogados em lei, os vulgarmente chamados de sem terras.
Não bastasse a possibilidade de a União poder desapropriar o imóvel rural que não cumprir a função social, o legislador ainda previu o endurecimento na forma de indenização ao proprietário. Ao invés de indenização em dinheiro, como expressamente prevê para as desapropriações por necessidade ou utilidade pública, para esse tipo especial de desapropriação, estabelece a indenização pela terra nua em Títulos da Dívida Agrária, os TDAs, com prazo de carência de dois anos e, dependendo do tamanho do imóvel, parcelada em até 20 anos. Apenas prevendo para as benfeitorias úteis e necessárias o pagamento da indenização em dinheiro.
A intenção do legislador foi clara ao determinar que a propriedade rural só mereça respeito como direito individual preenchendo os requisitos previstos para a função social. Se não os atende, sofre a dupla penalidade: (a) da intervenção pela desapropriação e (b) da indenização respectiva em Títulos da Dívida Agrária.
Ocorre que o próprio legislador constitucional excepcionou a penalidade, quando inseriu, no art. 185, que as pequenas, médias e as propriedades produtivas seriam insuscetíveis de desapropriação para reforma agrária, deixando que a Lei nº 8.629/93 conceituasse tais requisitos, matéria que será analisada com mais profundidade quando do estudo sobre a reforma agrária.
Portanto, respeitar os requisitos estabelecidos pelo legislador para que a terra cumpra a sua função social é dar a esse bem de produção sua verdadeira e moderna destinação de uso.