Pragas e doenças nas lavouras são constantes desafios a serem enfrentados pela agricultura brasileira. Nem mesmo os grãos transgênicos — geneticamente modificados, até então, para serem mais resistentes a elas — têm conseguido escapar totalmente ilesos de seus ataques. E a utilização de mais agroquímicos no campo tem sido bastante debatida nos últimos anos, principalmente por causa dos excessos de aplicações, muitas vezes ocasionados pela desinformação.
Diante deste cenário, as novas práticas sustentáveis estão aí para auxiliar os produtores e o Manejo Integrado de Pragas tem se mostrado uma técnica de sucesso, que oferece a redução de gastos com os defensivos agrícolas e ainda proporciona melhor relação do homem rural com o meio ambiente.
O MIP alia métodos de controle baseado em princípios ecológicos, econômicos e sociais, que interferem o mínimo possível no agroecossistema. A partir da avaliação do espaço do cultivo, da tomada de decisão e da escolha da estratégia de controle, este tipo de manejo vem sendo aplicado em culturas Bt (Bacillus thuringiensis) — como algodão, milho e soja transgênicos —, por meio da implantação das áreas de refúgio, uma das técnicas do Manejo da Resistência de Inseto (MRI).
Seleção
A cultura Bt é obtida por meio da transformação genética de plantas com genes da bactéria Bacillus thuringiensis, responsáveis pela produção de proteínas com ação inseticida, protegendo-as contra o ataque de espécies de insetos, como a lagarta-do-cartucho (Spodoptera frugiperda) e a broca-do-colmo (Diatraea saccharalis), principais pragas que infestam as plantações de milho.
“O Manejo Integrado da Resistência é uma iniciativa fundamental para evitar o processo de seleção de insetos-praga resistentes às toxinas produzidas pelas plantas geneticamente modificadas e preservar a eficiência e o potencial da tecnologia Bt, evitando prejuízos à lavoura”, afirma José Américo Pierre Rodrigues, superintendente executivo da Associação Brasileira de Sementes e Mudas (Abrasem).
Na opinião do pesquisador da Embrapa Milho e Sorgo (MG), Paulo Afonso Viana, um dos principais riscos ligados à não adoção da área de refúgio “é a rápida seleção de indivíduos ou raças das pragas-alvo resistentes às toxinas do Bt”.
Nas lavouras Bt cultiva-se uma pequena porcentagem — que varia conforme a cultura — de cultivares convencionais para que os insetos possivelmente resistentes a Bt e os suscetíveis procriem, gerando uma nova população sem resistência, proporcionando uma sobrevida à toxina.
Plantio convencional
Mesmo com a produção contínua das toxinas ao longo do ciclo, as plantas Bt podem não controlar todas as pragas e doenças existentes, até porque elas são capazes de se reproduzir naturalmente mais resistentes. Daí a importância do MRI como uma das principais técnicas do Manejo Integrado de Pragas (MIP), porque favorece a racionalização do uso de agroquímicos e pode proteger o potencial de rendimento da lavoura.
Para aplicar o Manejo da Resistência de Inseto, é necessário que o produtor rural separe um espaço com o cultivo dos grãos convencionais (ou híbridos, sem a tecnologia Bacillus thuringiensis), sem modificações genéticas. É a chamada área de refúgio, que tem como objetivo manter uma população de insetos-praga-alvo da tecnologia Bt não expostas à proteína Bt.
Com a implantação dos refúgios, de acordo com a Abrasem, os insetos suscetíveis, quando adultos, podem acasalar com qualquer raro indivíduo naturalmente resistente que sobreviveu no cultivo Bt. Desta forma, a suscetibilidade poderá ser transmitida aos descendentes, garantindo a sustentabilidade da eficácia de controle.
“A área de refúgio é a principal estratégia que os produtores têm para evitar a quebra de resistência dos transgênicos, mantendo o equilíbrio ecológico e a produtividade das lavouras”, explica a pesquisadora Simone Martins Mendes, da Embrapa Milho e Sorgo.
Distância
O refúgio deve ser semeado com cultivares de iguais portes e ciclos aos do milho transgênico, por exemplo. Ainda é necessário observar que ele deve estar a menos de 800 metros de distância das plantas transgênicas.
“Este sincronismo entre o desenvolvimento das plantas Bt com as não Bt permite o desenvolvimento de mariposas (adultos das lagartas) na área de milho Bt, simultaneamente com as emergidas na área de refúgio. Assim, ocorre o aumento de chances de acasalamento entre estes adultos, pois as mariposas não se dispersam por mais de 800 metros”, explica Simone.
Segundo a pesquisadora, a rápida seleção de biotipos ou raças das pragas-alvo resistentes às toxinas do Bt também é um risco que não deve ser usado na área de refúgio. “Por isto, evitar a seleção de insetos resistentes é a melhor estratégia”, reforça ela, salientando que a utilização da área de refúgio também é essencial para garantir a manutenção da funcionalidade e da durabilidade da tecnologia Bt.
Buscar informações
Para abrir uma área de refúgio, o agricultor precisa buscar informações. “Quando as dimensões das glebas cultivadas com milho Bt, por exemplo, forem acima de 800 metros de comprimento, serão necessárias faixas de refúgio internas nas respectivas glebas, semeadas simultaneamente”, alerta o pesquisador Paulo Afonso Viana, da Embrapa Milho e Sorgo.
A área de refúgio pode ser elaborada seguindo diversas configurações, de acordo com a cartilha da Abrasem “Manejo Integrado da Tecnologia Bt – Eu planto este compromisso”:
- Bloco: Plante uma área de refúgio na forma de um bloco convencional adjacente à área do milho Bt, por exemplo.
- Perímetro: Plante uma área de refúgio na forma do perímetro ou quatro a seis linhas do campo da lavoura de grãos geneticamente modificados.
- Em conjunto com outra cultura: Plante uma área de refúgio de milho convencional, por exemplo, até 800 metros da área de milho Bt, por exemplo.
- Faixas: Plante uma área de refúgio de quatro a seis linhas de milho convencional dentro da área dos Bts.
- Pivô central: Plante o refúgio na proporção recomendada pela empresa produtora da semente dentro da área irrigada.
Atenção!
- Primeiro, faça a semeadura da área de refúgio com as sementes não Bt;
- Caso a população de pragas-alvo atinja nível de dano econômico na área de refúgio, o controle poderá ser realizado com inseticidas que não sejam formulados à base de Bt;
- A área de refúgio deve estar na área irrigada para que tenha as mesmas condições de manejo.
Regulamentação
O plantio da área de refúgio não elimina a necessidade de atender à Norma de Coexistência — Resolução Normativa 04, publicada no Diário Oficial da União (DOU) nº 163, de 23 de agosto de 2007, seção I, página 19 — estabelecida pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio).
A Comissão estabelece as distâncias mínimas entre cultivos comerciais de milho geneticamente modificado e outro de milho não geneticamente modificado, em áreas vizinhas, de forma a permitir a coexistência entre os diferentes sistemas de produção no campo.
Deve ser igual ou superior a 100 metros, ou alternativamente 20 metros, desde que acrescida de bordadura com, no mínimo, dez fileiras de plantas de milho convencional, de porte e ciclo vegetativo similares ao milho geneticamente modificado. Desta forma, o refúgio pode ser feito com o aproveitamento da área de coexistência, desde que atenda à distância máxima precisa determinada pela CTNBio.
Pós-graduado em Entomologia com ênfase em Manejo de Resistência de Insetos (MRI), o pesquisador da Embrapa Milho e Sorgo José Magid Waquil ressalta que, no caso da cultura da soja, por ser uma cultura de auto-fecundação, não há a necessidade de práticas para a coexistência. Já para a cultura do algodão transgênico não é permitida em áreas de exclusão, onde ocorrem populações de algodão selvagem.
Porcentagens
Os espaços no campo destinados às áreas de refúgio em relação às culturas transgênicas ainda não contam com regulamentação no Brasil, até porque eles precisam ter parâmetros federais, inclusive para fiscalização. A intenção do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) é adotar regras semelhantes às implantadas na Austrália e Estados Unidos, mas com padrões adaptados à realidade brasileira.
O percentual da área da lavoura a ser semeado com milho não Bt, por exemplo, conforme recomendação do MAPA, é de 10% do total da lavoura, independente da tecnologia a ser utilizada em milho. “Já existem questionamentos e a tendência é que esta área seja aumentada”, destaca Waquil. Para a soja Bt, foi estabelecida a área de refúgio em 20%; e de 5% a 20% para o algodão.
A partir de reuniões realizadas em 2014, pelo Grupo Técnico-Científico sobre Manejo de Resistência de Insetos-Praga a Proteínas Bt (GTMR), o Mapa publicou um documento que analisa as áreas de refúgio para as culturas transgênicas.
Entre os principais itens discutidos estão as decisões sobre alguns princípios e orientações gerais para a definição das recomendações técnicas para áreas de refúgio. “Quanto maior a área de refúgio, maior a longevidade ou durabilidade da tecnologia. Desta forma, seria recomendável uma ampliação periódica dos percentuais de área dedicados ao refúgio, levando-se em conta a disponibilidade de sementes não Bt”, diz o documento.
A definição dos percentuais e as características das áreas de refúgio devem considerar tanto a eficiência do manejo quanto sua aplicabilidade prática pelo agricultor. Sobre as recomendações de percentuais em vigor, de acordo com as empresas detentoras das biotecnologias, o GTMR entendeu que, em geral, elas estariam adequadas já para a safra – de 2014/15, cujo ciclo foi encerrado em junho deste ano.
Rotação de híbrido
O pesquisador José Magid Waquil alerta o agricultor que, se não usar a área de refúgio, ele pode ser o primeiro a sofrer com os prejuízos. Isto porque, quando não há estímulos à migração, a tendência dos insetos-praga emergidos em determinada área é continuar no local.
“É recomendado que, além de plantar a área de refúgio, o produtor faça uma rotação do seu híbrido, utilizando diferentes eventos de Bt na sua área plantada, principalmente onde já foi observada ocorrência de lagartas. Além disto, o produtor deve utilizar híbridos de milho expressando mais de uma proteína Bt e evitar o uso do mesmo evento Bt utilizado no ano anterior”, orienta.
Waquil destaca que, conforme o tipo de grão transgênico escolhido, pode ser esperada maior ou menor eficácia de controle das espécies de praga. “Sempre que possível, deve-se selecionar eventos (geneticamente modificados) que expressem proteínas inseticidas diferentes para milho, soja e algodão, evitando a sobreposição de proteínas inseticidas, com intuito de reduzir a pressão de seleção na área plantada”, explica.
O monitoramento da eficácia dos eventos Bt, utilizados nas lavouras, deve servir de balizamento para escolha dos transgênicos a serem plantados na safra seguinte. Para tanto, o produtor deve conhecer as proteínas inseticidas expressas em cada um deles e evitar os seus cultivos com a mesma proteína inseticida em toda a sua lavoura.
A pesquisadora Simone Martins Mendes, da Embrapa Milho e Sorgo, ressalta, ainda, que é preciso ter o mesmo cuidado em relação às proteínas que apresentam menor eficácia no controle das lagartas, na safra anterior. “É o que chamamos de ‘rotação de genes’ ou de proteínas inseticidas.”
Adoção das lavouras Bt
“Na ausência de pressão de seleção, ou seja, antes da adoção das lavouras Bt, é possível que genes de resistência já estejam presentes na população do inseto, entretanto, em baixa frequência”, alerta Simone.
Ela explica que, com o uso da tecnologia Bt por várias gerações, fazendo pressão de seleção gradativa sobre as populações selvagens, isto pode levar à redução da freqüência dos indivíduos suscetíveis e selecionar os indivíduos resistentes à proteína Bt.
“Este processo pode ser acelerado ou retardado, dependendo, respectivamente, da maior ou menor frequência de acasalamento de fêmeas resistentes com machos também resistentes. A utilização da alta dose é importante para controlar os indivíduos híbridos (heterozigotos), resultantes do acasalamento entre um resistente e um suscetível. Mesmo assim, a utilização da área de refúgio é crucial para produzir um número suficiente de indivíduos suscetíveis para evitar a chance de dois resistentes se acasalarem, gerando insetos resistentes homozigotos”, esclarece a pesquisadora.
“Assim, torna-se imperativo a utilização da área de refúgio com cultivares não Bt, reduzindo a velocidade de seleção de insetos resistentes. Como a função da área de refúgio é produzir indivíduos suscetíveis à tecnologia Bt, não se deve utilizar bioinseticida à base de Bt para pulverizar essa área e deve-se estabelecer um programa de manejo integrado de pragas (MIP), para reduzir a pulverização com inseticidas convencionais”, orienta Simone.
Boas práticas
As boas práticas de Manejo da Resistência de Insetos, que integra a técnica do MIP, segundo a Abrasem, podem ser aplicadas conforme as seguintes etapas:
- Adoção de áreas de refúgio – O plantio e a manutenção das áreas de refúgio representam os principais componentes do plano de MIR das culturas Bt, com objetivo de manter uma população de insetos-praga-alvo da tecnologia geneticamente modificada sem exposição à proteína Bt.
- Dessecação antecipada seguida de inseticida – As culturas antecessoras, a exemplo das plantas daninhas e voluntárias presentes no meio ambiente, podem hospedar as principais pragas que atacam a cultura do milho, por exemplo, em sua fase inicial, influenciando a espécie predominante e a pressão inicial das pragas. Desta forma, no sistema de plantio direto, a pressão de pragas na fase inicial da cultura pode ser maior, se comparada ao sistema de plantio convencional.
- Controle de plantas daninhas – Algumas plantas daninhas podem hospedar insetos-praga das culturas subsequentes, permitindo que uma quantidade significativa sobreviva nas áreas de cultivo no período da entressafra. Além disto, ervas daninhas podem ser fontes de lagartas em ínstares (estágios larvais) mais avançados, que apresentam maior dificuldade de controle pela tecnologia Bt.
- Tratamento de Sementes – TS é uma prática que objetiva controlar as pragas subterrâneas e iniciais da cultura, em um período de grande suscetibilidade às pragas. Os danos provocados pelas pragas resultam em falhas na lavoura. devido ao ataque às sementes após a semeadura, danos às raízes após a germinação e à parte aérea das plantas recém-emergidas.
- Monitoramento seguido de inseticida – O monitoramento é fundamental. A partir dele, toma-se a decisão de realizar ou não uma aplicação complementar de inseticida na lavoura.
- Rotação de culturas – A rotação de culturas consiste em alternar o plantio de diferentes espécies de culturas na mesma área agrícola. Com ela, o agricultor melhora as propriedades físico-químicas do solo e reduz a população inicial de alguns insetos-praga da cultura.
Eficácia
Embora tenha sido cada vez mais comprovada sua eficácia, a implantação de uma área de refúgio, que merece todos os cuidados necessários quanto ao cultivo Bt, pode ser encarada como um trabalho extra para o proprietário rural.
“O plantio simultâneo de Bt e não Bt ainda é visto pelo produtor como um trabalho a mais, porém o desenvolvimento conjunto é necessário e comprovadamente eficiente”, atesta a analista de Transferência de Tecnologia da Embrapa, Carmen Pezarico.
Ela explica ainda que, para alguns tipos de materiais, é aconselhado o refúgio no saco, um método que mistura sementes de plantas modificadas e não modificadas.
“A desvantagem está em predispor os insetos vulneráveis mais facilmente às plantas Bt e diminuir o número destes para garantir o cruzamento com insetos resistentes. Já a vantagem é a facilidade e proximidade dos insetos suscetíveis migrarem para acasalar com os resistentes”, informa.
Independentemente da planta Bt, a utilização da área de refúgio é fundamental para manter a eficiência da tecnologia por mais tempo. E o princípio envolvido nestes espaços específicos é muito simples: se o agricultor mantiver uma área de cultura 100% Bt, a ação inseticida da planta eliminará a maioria dos insetos-praga, mas será preservado um pequeno grupo naturalmente resistente àquele princípio ativo.
Com o tempo, os mais resistentes serão os únicos sobreviventes e cruzarão entre si, gerando novas populações de indivíduos resistentes ao Bt. Por isto, a área de refúgio, formada por plantas convencionais, serve de abrigo para insetos suscetíveis à ação dos transgênicos. A sobrevivência deles garante novos cruzamentos entre resistentes e suscetíveis, gerando novas populações em que esta resistência será diluída, promovendo a presença de insetos que serão eliminados pela cultura Bt.