Pesquisa brasileira favorece produção de insumos de alto valor agregado para os ramos alimentício, farmacêutico, cosmético e até mobiliário, com uso do bagaço de uva, resíduo da indústria de vinho
Transformar semente de café verde em cosmético para homens, restos de malte da cerveja em sola de tênis, bagaço da cana-de-açúcar em cola sustentável. São novidades a perder de vista, que vêm movimentando a agroindústria brasileira.
Diversas empresas agrícolas, que crescem a cada ano no País, estão aprendendo a aproveitar os resíduos agropecuários que, antes, iam parar no lixo ou eram descartados de forma indevida, causando impactos negativos ao meio ambiente.
As instituições públicas também não ficam atrás, como é o caso da Unidade de Agroindústria de Alimentos (RJ), da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Um trabalho científico mais recente mostra que é possível aproveitar, integralmente, resíduos da indústria de vinho.
A produção industrial vinícola resulta em toneladas de material vegetal processado, que impactam a natureza. Dados estimados pela estatal indicam que, atualmente, somente 3% dos resíduos dessas empresas passam por um processo de aproveitamento.
Com foco em inúmeras possibilidades, durante os últimos oito anos, pesquisadores da Embrapa desenvolveram insumos de alto valor agregado para os ramos alimentício, farmacêutico, de cosmética e até mobiliário, usando o bagaço da uva, um dos mais nobres resíduos agroindustriais, que é transformado em ingredientes funcionais, corantes naturais e nanocristais de celulose.
Etapas de produção
Conforme a estatal, o processo de aproveitamento, na íntegra, dos resíduos da produção de vinhos, espumantes e sucos de uva pode ser implantado na linha de produção industrial com equipamentos simples e de baixo custo.
Na primeira etapa é incluída a extração de compostos antioxidantes – fenólicos, incluindo as antocianinas – da casca da uva, sem as sementes. Como a presença deles é abundante, o processo resulta em ingredientes funcionais e corantes naturais de alta qualidade.
Em seguida, é possível realizar um processo simples de extração aquosa, a quente, de fibras alimentares, que ainda carregam compostos antioxidantes em sua estrutura, resultando em um produto rico em fibras antioxidantes.
Óleo cosmético
Da semente da uva, é extraído um óleo de grande valor cosmético. A torta restante, rica em lignina, pode ser usada na fabricação de mobiliários ou na geração de energia. E embora apresente menor teor de fibras, pode ainda ser submetida a uma extração aquosa, para obtenção de extratos ricos em fibras alimentares nobres e compostos fenólicos.
Para os testes, os pesquisadores da Embrapa Agroindústria de Alimentos realizaram diversas análises para garantir a segurança do consumo dos bagaços de uva e seus coprodutos.
Valor nutricional
O bagaço é o principal tipo de resíduo da indústria vinícola, representando entre 20% e 30% do peso de toda uva processada. É um importante subproduto, rico em fibras alimentares e com relevante concentração de compostos antioxidantes, que combatem os radicais livres do corpo humano, prevenindo o envelhecimento e o surgimento de inúmeras doenças crônicas e degenerativas.
Esse coproduto da uva, no entanto, ainda é tratado como sendo de baixo valor econômico, reaproveitado apenas como adubo na plantação, ração animal ou, então, incinerado.
“Nosso maior desafio é convencer o empresário a utilizar os resíduos da indústria vinícola para um fim mais nobre, ou seja, aproveitar seus valiosos compostos bioativos para obter produtos de maior valor agregado”, defende Renata Valeriano Tonon, pesquisadora da Embrapa Agroindústria de Alimentos.
Doutora em Engenharia de Alimentos, ela lidera um projeto que busca o aproveitamento dos resíduos das indústrias vinícolas do Vale do Rio São Francisco, uma região localizada, em grande parte, nos Estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas.
Dados do Brasil
A Embrapa destaca que, atualmente, o Brasil está em 17º lugar na produção de vinho no mundo, estimada em mais de um milhão de toneladas por ano, concentrada majoritariamente no Sul do País, principalmente no Rio Grande do Sul.
Nas últimas décadas, porém, essa produção tem se expandido para outras localidades, como a região do Submédio do Vale do Rio São Francisco, em Pernambuco, considerando que algumas variedades de uva se adaptam bem a climas quentes.
Fonte de fibras antioxidantes
Pesquisadores da Embrapa Agroindústria de Alimentos buscam, desde 2010, soluções para o aproveitamento dos resíduos da indústria vinícola, em parceria com outras unidades da estatal: Uva e Vinho (RS) e Semiárido (PE).
Formada por uma equipe de aproximadamente 15 pesquisadores e técnicos do órgão, a pesquisa vem aprofundando a análise das características desses resíduos agroindustriais, proveniente de diversas uvas produzidas em território brasileiro.
Agora, eles chegaram a um consenso: independentemente da variedade da uva, não há variação significativa nos resultados para a obtenção desses ingredientes funcionais de alto valor agregado.
“A ideia inicial era recuperar os compostos fenólicos, que são substâncias com comprovado poder antioxidante e estão presentes em grande quantidade nas cascas e sementes da uva, mesmo após o processo de fermentação ocorrido durante a produção de vinho tinto”, explica a doutora em Engenharia Química Lourdes Maria Correa Cabral, também cientista da Embrapa Agroindústria de Alimentos.
Coordenadora do primeiro projeto voltado ao aproveitamento dos resíduos das indústrias vinícolas do Sul do País, ela destaca ainda que “as antocianinas são a principal classe de fenólicos presentes nas uvas tintas, sendo responsáveis por sua coloração roxa típica”.
Substituição de sintéticos
“Existe, atualmente, uma tendência de uso de aditivos naturais, uma vez que os sintéticos vêm apresentando restrições devido a possíveis efeitos tóxicos prejudiciais à saúde, o que têm incentivado as pesquisas voltadas à obtenção de corantes e antioxidantes naturais”, conta Renata Tonon.
Conforme a cientista, “algumas indústrias de ingredientes já comercializam corantes à base de antocianinas, obtidos a partir de matérias-primas vegetais”.
A doutora em Ciências (Bioquímica) Caroline Mellinger Silva, pesquisadora do Laboratório de Bioquímica da mesma unidade, também ressalta: “Em uma fase mais recente da pesquisa, a equipe verificou que, além de rico em compostos antioxidantes, o bagaço da uva fornece fibras solúveis funcionais em grande quantidade”.
Benefícios para saúde
Os benefícios para a saúde humana, relacionados ao consumo de fibras, já são conhecidos: elas reduzem doenças cardiovasculares, previnem o diabetes, diminuem a absorção de glicose, regulam o trânsito gastrointestinal e reduzem o colesterol sanguíneo.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda o consumo diário entre 27 e 40 gramas para um adulto. E uma forma de aumentar o consumo da população seria utilizar as fibras como ingrediente ou insumo na indústria de alimentos ou como suplemento alimentar.
Dez vezes mais fibras que as farinhas atuais
O processo desenvolvido na Embrapa consegue disponibilizar um ingrediente de alta qualidade, com uma quantidade dez vezes maior de fibras alimentares que as farinhas de uva encontradas no mercado.
Testes realizados no Laboratório de Bioacessibilidade da Unidade de Agroindústria de Alimentos, em um modelo estático de digestão, mostraram que a farinha bruta, extraída da casca da uva, pode ser usada como suplemento destinado ao público que deseja obter os benefícios das fibras insolúveis.
“As fibras solúveis não são muito desprendidas do produto no trato gastrointestinal. Já as fibras antioxidantes, quando recuperadas do bagaço, são 100% desprendidas do alimento e podem atuar como fibras solúveis, que são consideradas mais nobres por terem impacto na redução de risco de doenças metabólicas”, explica Caroline.
Para complementar o estudo, já foram iniciados testes pré-clínicos no Departamento de Farmacologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), liderados pela professora Maria Fernanda Werner.
De acordo com a estatal, o teste in vivo pretende investigar os mecanismos digestivos acionados com a ingestão da farinha integral e do ingrediente, rico em fibras antioxidantes, e orientar quanto ao consumo.
Alto valor de mercado
Na visão de Caroline Mellinger, além do aspecto nutricional, há de se considerar a importância comercial desse produto, pois os suplementos à base de fibras alimentares são vendidos no varejo a um preço elevado, chegando a custar 350 reais o quilo.
As matérias-primas para a produção desses suplementos são majoritariamente produzidas no exterior e processadas por grandes empresas.
“Desenvolver e viabilizar insumos nacionais de alta qualidade e a baixo custo representa uma inovação no mercado, que pode contribuir para ampliar o acesso da população a esse tipo produto”, afirma a cientista.
Conforme a Embrapa, esse ingrediente funcional já foi submetido à avaliação de consumidores, após um teste de aceitação de um iogurte natural, adicionado do extrato rico em fibras, realizado com 130 consumidores, no Laboratório de Análises Sensoriais e Instrumentais da unidade de Agroindústria de Alimentos.
“O produto foi considerado ótimo ou bom por 90% dos participantes da pesquisa, sendo que 93% indicaram achar uma boa ou ótima ideia adicionar fibras antioxidantes a um produto”, informa a bióloga Carolina Beres, que realizou a pesquisa como parte de seu doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em parceria com a estatal.
Produtos multifuncionais
O extrato em pó proveniente do bagaço de uva pode ser considerado um insumo agroindustrial com grande potencial funcional.
Para avaliar sua funcionalidade, a doutora em Ciência da Nutrição Karina Maria Olbrich dos Santos, também pesquisadora da Embrapa Agroindústria de Alimentos, desenvolveu um estudo para analisar o impacto do consumo de uma bebida de leite caprino, adicionada do extrato e suco de uva sobre a composição e a atividade da microbiota intestinal humana.
A pesquisa, realizada em parceria com a professora Kátia Sivieri, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), promoveu um teste in vitro, que ocorreu com a utilização de um equipamento simulador do ecossistema microbiano intestinal humano.
Bons resultados
Os resultados observados no estudo demonstraram que as bebidas probióticas de leite de cabra, enriquecidas com extrato de uva, apresentaram elevadas quantidades de fibras alimentares e de compostos fenólicos, que são considerados biologicamente ativos.
De acordo com Karina Olbrich, as análises da composição e da atividade metabólica da microbiota intestinal simulada in vitro indicaram que o consumo dessa bebida enriquecida com o extrato de uva pode trazer benefícios para a saúde.
“A bebida promoveu um aumento substancial de ácidos graxos de cadeia curta, que são benéficos à saúde do intestino e favorecem o controle de microrganismos causadores de doenças, reduzindo o pH intestinal”, conta a doutora em Ciência da Nutrição, que trabalha no desenvolvimento de produtos lácteos caprinos com potencial funcional.
Mais vantagens
Também foi notado um aumento da população intestinal de bactérias, como lactobacilos e bifidobactérias, que têm efeito positivo para o corpo humano. Portanto, é por causa dessas diversas funcionalidades que a bebida enriquecida com extrato de uva pode ser considerada um produto multifuncional.
O consumo de produtos derivados de leite de cabra pode ser uma boa opção para a produção de alimentos funcionais, particularmente para indivíduos que não podem ingerir produtos lácteos bovinos, devido a alergias proteicas.
A bebida láctea fermentada probiótica, adicionada de suco e extrato do bagaço da uva, foi avaliada sensorialmente por 112 consumidores potenciais, na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp, em Araraquara (SP). O teste de aceitabilidade indicou que o produto obteve aprovação para todos os atributos sensoriais avaliados.
Ainda apresenta mais uma vantagem, segundo Karina Olbrich: “Agrega-se funcionalidade e cor, naturalmente, dispensando o uso de corantes artificiais”.