Carne sem ser de origem animal, carne sintética feita de células-tronco de bovinos e até ovo que não vem da galinha ditam novos rumos do mercado vegano e vegetariano, no Brasil e no mundo
Aroma, visual e textura de carne, mas não é carne. Assim os hambúrgueres feitos de vegetais têm ganhado espaço no mercado brasileiro, após recentes investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) de empresas que enxergam o potencial no mercado de consumidores que não se alimentam de proteína animal, sejam eles veganos, vegetarianos ou flexitarianos.
Lançada em setembro no Brasil, uma das novidades vem da rede de fast-food Burguer King, que colocou em seu cardápio um hambúrguer feito somente de vegetais, sem adição de carne bovina, suína ou de frango, a exemplo de outros sanduíches da marca.
“O Brasil é um dos mercados mais importantes para o Burger King, no mundo. Em pesquisas conduzidas com consumidores, percebemos que o interesse e a disposição por comprar produtos à base de plantas, no Brasil, chegam a ser maiores do que em outros países como China, Estados Unidos e Inglaterra”, avalia Ariel Grunkraut, diretor de Marketing e Vendas do Burger King nacional.
Desenvolvido em parceria com a Marfrig – uma das maiores produtoras de carne bovina do planeta e a maior fabricante global de hambúrgueres –, o novo hambúrguer é resultado de um acordo firmado com a norte-americana Archer Daniels Midland Company (ADM), uma das maiores fornecedoras mundiais de ingredientes alimentícios.
Presidente da ADM Nutrition na América Latina, Roberto Ciciliano ressalta que a empresa possui “uma avançada estrutura de P&D e soluções tecnológicas para fornecer a melhor combinação de ingredientes e sabores do hambúrguer 100% vegetal, disponível nas lojas do Burger King”.
O hambúrguer possui uma receita exclusiva à base de plantas, além de tomates frescos fatiados, alface fresca, maionese, queijo, ketchup, picles e cebolas fatiadas em um pão de gergelim.
Dados de mercado
Alternativas vegetais às proteínas de origem animal já são uma realidade planeta afora, de acordo com o coordenador de Inovação do The Good Food Institute (GFI) no Brasil, Felipe Krelling.
Segundo o executivo, países como os Estados Unidos possuem um mercado de proteínas alternativas bem estruturado, “contabilizando mais de três bilhões de dólares por ano”.
Alimentos plant-based foram eleitos como a maior tendência alimentar de 2018, pelos consultores da Baum & Whiteman, e pesquisas preveem que esse mercado global deve chegar a valer 6,4 bilhões de dólares, até 2023.
De acordo com a instituição, o Brasil não deve ficar atrás nesse cenário, levando em conta que ocupa o quinto lugar no mercado mundial de alimentos e bebidas saudáveis, com um crescimento de 20% ao ano, enquanto a média global é de 8%.
Cenário em Israel e EUA
O coordenador de Inovação do GFI, cita a empresa israelense Aleph Farms, que produziu a primeira “carne vegetal” em formato de um bife tradicional, já disponível no Brasil, um pouco parecido com o coxão mole.
“O desafio atual (de produzir alimentos plant-based e cell-based) se difere em cada país. Nos EUA, por exemplo, é necessário terminar o marco regulatório para que esses produtos cheguem, o quanto antes, nas prateleiras do varejo”, diz o executivo.
Ele ressalta que o GFI está acompanhando e contribuindo para que essas pontes sejam feitas o mais rápido possível. “No caso dos EUA, o USDA (Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, em português) já está trabalhando com o FDA (Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA) para que isso se torne realidade”, adianta.
Consumo no Brasil
Para compreender o potencial desses novos produtos no Brasil, o The Good Food Institute, em parceria com a Snapcart, realizou uma pesquisa para entender melhor os hábitos de consumo dos brasileiros em relação aos alimentos de origem vegetal.
Durante o estudo, que também buscou entender quais as motivações das pessoas que adotam dietas sem produtos de origem animal, foram entrevistadas mais de nove mil pessoas de todas as regiões brasileiras, que consomem ou não esses tipos de produtos. Os resultados mostraram uma tendência de redução no consumo de carne, ovos e derivados do leite por parte dos brasileiros.
Quando perguntados sobre o que achavam da ideia de reduzir produtos de origem animal, a grande maioria dos entrevistados que os consomem enxergava essa mudança de hábito de maneira positiva, com 29% das pessoas já colocando isso em prática.
Para o GFI, diante de um mercado expressivo como o do Brasil, essa é a prova de que um número considerável de pessoas se sente familiarizado com os benefícios de um consumo menor de produtos de origem animal e tem interesse pelo assunto.
Mostra também que mesmo aqueles, que não consideram cortar completamente esse tipo de alimento de origem animal da dieta, podem estar abertos a repensar seus hábitos alimentares.
Avaliação
Segundo análise do The Good Food Institute, o mercado de proteínas vegetais no Brasil vem se desenvolvendo rapidamente, com grande potencial de expansão em diversas áreas a serem exploradas.
A pesquisa é pioneira no mercado nacional de plant-based, sendo a primeira a analisar informações específicas desse segmento no País. O principal objetivo foi entender as necessidades do setor de alimentos à base de vegetais e identificar suas potencialidades.
Por meio desse primeiro mapeamento do GFI, já foi possível estabelecer uma perspectiva sólida, capaz de oferecer informações relevantes para o desenvolvimento de novos produtos, abrindo portas para quem busca entrar nesse mercado, que tende a continuar crescendo no Brasil.
Além do nicho
A pesquisa também aponta que o mercado de proteínas alternativas é abrangente e possui muito mais alcance do que apenas nichos específicos.
A maior parte das nove mil pessoas entrevistadas considera a redução do consumo de produtos de origem animal como algo positivo e o número de quem já pratica essa redução é expressivo. A saúde foi apontada como maior motivador dos consumidores em direção às dietas alternativas vegetais.
Também foi comprovado que fatores básicos como sabor, preço e conveniência movem essas pessoas, portanto, proteínas vegetais saborosas, distribuídas em lugares acessíveis e a preços convenientes combinariam, segundo o The Good Food Institute, todos esses fatores e conquistariam o mercado de vez.
Para acessar a pesquisa completa, acesse o link (encurtado): ow.ly/JpYu30pwOY2.
Primeira foodtech
Lançada em abril de 2019, de olho no mercado vegetariano e vegano, a Fazenda Futuro é a primeira foodtech brasileira voltada à produção de carne à base de plantas, sem origem animal, apresentando-se com um grande diferencial: a empresa garante que a carne vegetal tem o mesmo sabor, textura e cheiro da bovina.
“O Futuro Burger, produto de estreia da Fazenda Futuro, usa como base ingredientes vegetais, a exemplo da proteína de ervilha, proteína isolada de soja e de grão de bico, além de beterraba para imitar a cor e o sangue da carne. Tudo sem glúten, sem transgênicos e, claro, sem boi”, relata o fundador e CEO da empresa, Marcos Leta, em entrevista à revista A Lavoura.
Segundo o executivo, a ideia de criar a Fazenda Futuro veio a partir da análise de dados da produção e do mercado consumidor de carne animal no País.
“O consumo de carne, hoje, gera um impacto ao planeta fazendo com que, cada vez mais, as pessoas tomem consciência desses fatos e optem por mudanças na alimentação. E é para essas pessoas, que querem ter uma vida mais equilibrada, mas não querem abdicar do que amam comer, que a Fazenda Futuro foi criada”, conta Leta.
Marcos Leta, fundador e CEO da foodtech Fazenda do Futuro garante que o burguer feito à base de plantas, produzido pela empresa, tem o mesmo sabor, textura e cheiro da carne bovina – Fotos: Divulgação Fazenda do Futuro
De cima para baixo, hambúrguer de caju, da Embrapa Agroindústria Tropical, almôndegas de quinoa e bolinhos de feijoada e a última foto, o “siriju”, da fibra de caju, elaborados pela Embrapa Agroindústria de Alimentos em parceria com a Sottile Foods, empresa sediada em Niterói-RJ, já estão sendo comercializados
Fotos: Sottile Foods
Onde encontrar
Na visão do empresário, opções para consumir o Futuro Burger, carro-chefe da Fazenda Futuro, não faltam: “Quem quiser experimentar receitas exclusivas e especiais pode conferir a novidade no cardápio de casas como T.T. Burger – do premiado chef Thomas Troisgros –, Lanchonete da Cidade, Balada Mix, B de Burger, Bibi Sucos, Delírio Tropical, Red Burger, The Black Beef, entre outros”.
“No varejo, o produto pode ser encontrado, nacionalmente, no Pão de Açúcar, Extra, Carrefour e Makro, além dos varejistas regionais como o Supermercado Zona Sul, St. Marche, Zaffari, Casa Santa Luzia, Mercadinho São Luis, Hirota, Muffato e La Fruteria, que já contam com a novidade em suas gôndolas.”
Ainda segundo Leta, “se a preguiça bater, o consumidor ainda pode pedir pelos e-commerces de congelados como Liv up, Beleaf, Vya, Bio Point, Natue e VegIn”. Segundo o executivo, “ao desenvolvermos tecnologias capazes de criar alimentos sem origem animal, idênticos em sabor, textura e cheiro de carne, queremos mostrar que é possível revolucionar a indústria alimentícia, sem causar um impacto negativo ao meio ambiente”.
“Minha meta é simples: evoluir com novas gerações e versões da nossa carne e chegar a um volume de carne de vegetais que se torne mais barato do que a carne de origem animal.”
Fibra de caju
A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) também vem desenvolvendo produtos alimentícios sem ser de origem animal. Hambúrgueres, coxinhas, nuggets, caftas e bolinhos à base de vegetais fazem parte de um trabalho de pesquisa da Unidade Agroindústria de Alimentos (RJ) da estatal, em parceria com a Sottile Alimentos, empresa de Niterói (RJ).
Batizado de New Burguer, o segredo do novo hambúrguer, além da adição da fibra de caju, está no uso de ingredientes que proporcionam características muito próximas às de produtos elaborados com carne bovina. Entre os lançamentos também está o Siriju, bolinho similar ao produzido com siri, no entanto, é feito só com vegetais.
A fibra de caju é proveniente do Estado do Ceará, onde a Embrapa Agroindústria Tropical (CE) desenvolveu estudos que possibilitam sua utilização como ingrediente.
Atualmente pesquisadora da Embrapa Agroindústria de Alimentos, no Rio de Janeiro, a engenheira de alimentos Janice Ribeiro Lima conta que a ideia inicial era evitar o desperdício do bagaço do caju gerado pela indústria do suco, que é usado na alimentação animal.
Valor nutricional
Os cientistas brasileiros envolvidos nesse trabalho notaram que muitas pessoas, no Ceará, já aproveitavam a fibra de caju para a produção de hambúrguer, no entanto, ele se apresentava com baixo teor de proteína. Por isso, de acordo com Janice – que também é mestre e doutora em Tecnologia dos Alimentos –, foram feitos testes com a adição de outras fontes de proteína, como a texturizada de soja.
“A finalidade dos testes também foi trabalhar a fibra para ter menos gosto de caju e para ficar com uma textura mais agradável ao consumo”, relembra a engenheira de alimentos que, na época, trabalhava na Embrapa Agroindústria Tropical.
Janice se dedica ao desenvolvimento de produtos com a empresa parceira Sottile, ao lado do analista e também pesquisador da Embrapa Agroindústria de Alimentos André Dutra, que é engenheiro agrônomo, mestre e doutor em Ciência e Tecnologia de Alimentos.
Textura, cor e sabor
Com as informações sobre como tratar a fibra de caju, eles chegaram aos ingredientes que poderiam melhorar as características sensoriais de sabor, aparência e textura dos produtos.
“O hambúrguer, por exemplo, com base de soja e fibra de caju, é muito semelhante em termos de textura, cor e sabor ao similar de carne bovina”, garante Janice.
Para quem está acostumado a consumir o hambúrguer bovino, “não sentirá tanta diferença no sabor e na textura e vai consumir um produto que é vegetariano e rico em fibras”, afirma a engenheira de alimentos.
Sustentável e saudável
Seu parceiro na pesquisa, André Dutra explica que o uso da fibra de caju – oriunda da fruta nativa com grandes extensões de plantio e produção na região Nordeste do País – promove uma solução sustentável ao descarte das indústrias de sucos.
Números de 2017 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o Brasil produziu aproximadamente 60 mil toneladas de caju, sendo que 75% correspondem à fibra, após o aproveitamento do suco e da castanha.
O analista ressalta que esses produtos agregam valor à cadeia do caju e são diferenciados também pelo seu apelo saudável.
“Eles são ricos em fibra, componente importante na alimentação humana, que ainda proporciona a redução do valor calórico aos produtos desenvolvidos”, diz o engenheiro agrônomo.
A parceira
Parceira da Embrapa Agroindústria de Alimentos nesse trabalho de pesquisa com a fibra de caju, a Sottile Alimentos – que funciona em Niterói (RJ) – surgiu como empresa de produtos vegetarianos, no ano passado.
Um dos sócios da companhia, Thiago Rosolem lembra que ele e o irmão, Bruno Rosolem, estavam procurando algo semelhante à jaca, para utilizar na fabricação de seus produtos. Foi quando souberam do estudo da Embrapa com a fibra de caju e seus benefícios.
“Desde 2018, estamos trabalhando nesse projeto com a Embrapa para desenvolvimento de produtos alimentícios com a fibra de caju. O objetivo é expandir cada vez mais o número de produtos”, diz Thiago.
Bruno ressalta que a perspectiva é atender ao mercado nacional e, quem sabe, exportar: “Temos o produto mais sustentável do mercado, pois damos uma destinação nobre à fibra de caju, que antes era descartada.
Nossa ideia é ter o New Burguer, nos próximos meses, em prateleiras de supermercados, além de atender food services como hamburguerias, restaurantes e afins”.
O New Burguer foi lançado no fim de junho de 2019, em uma hamburgueria de Niterói, e já está chegando a outras lanchonetes do Rio de Janeiro. “A coxinha e o ‘bolinho de siri’ (o Siriju, feito de caju) também já estão sendo comercializados no Rio e estamos trabalhando com distribuidores no Brasil para, em breve, chegarem aos supermercados de todas as regiões”, adianta Thiago.
Hambúrguer in vitro
Outro trabalho científico envolve a produção de “carne de laboratório”: um hambúrguer in vitro produzido a partir de células-tronco de bovinos.
Também chamada de cell-based meat (carne feita de células), a carne sintética não é simplesmente algo parecido com a carne bovina, é a própria carne, segundo publicação veiculada no site Pesquisa Fapesp, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (leia em: ow.ly/yKmd30pDQAS).
Cientificamente, o primeiro hambúrguer in vitro nasceu na Universidade de Maastricht, na Holanda, a partir das pesquisas do fisiologista Mark Post, que começaram em 2008. Os resultados da “nova carne”, feita de células de músculo de vacas criadas em seu laboratório, foram apresentados cinco anos mais tarde, em Londres (Inglaterra).
Em 2013, no entanto, três pessoas que provaram o hambúrguer – o próprio Post e dois especialistas em gastronomia – concordaram que a carne estava um pouco seca e pobre em sabor, devido à falta de gordura em sua composição, conforme publicou o jornal The New York Times (EUA), naquela ocasião.
Clean meat
Visto internacionalmente como “a cara da clean meat” (carne limpa), Post é diretor do Departamento de Fisiologia da instituição holandesa de ensino superior e responsável científico da empresa Mosa Meat, que se prepara para vender “carne de laboratório”, em 2021. A Mosa Meat também é parceira mundial do The Good Food Institute, tanto no Brasil quanto lá fora.
Em entrevista veiculada ao site Público (de Portugal), publicada em janeiro deste ano, o cientista declarou sua motivação para criar a carne limpa: “Produzir em escala, de forma a tornar o processo economicamente viável e obter aprovação legal para lançar os produtos no mercado. Todas as pessoas envolvidas acreditam que, em 2021, já estaremos produzindo para o mercado”.
“Há ainda a questão do meio de cultura necessário para a reprodução das células, que ainda está limitado à indústria farmacêutica e biomédica, que é relativamente pequena em relação às necessidades de uma indústria viável de carne de cultura. Será um negócio paralelo que se irá desenvolver”, conta Post. Leia a matéria completa acessando o link: ow.ly/gBWL30pDQoT.
Custos e parcerias
O processo desenvolvido por Post parte da extração de células-tronco bovinas de um fragmento de tecido muscular do animal. Essas células indiferenciadas se multiplicam em um meio de cultura contendo nutrientes e fatores de crescimento, transformando-se em fibras musculares.
Cerca de 20 mil finas tiras de tecido muscular foi combinada para formar um hambúrguer de aproximadamente 140 gramas. A produção em escala industrial será feita em um biorreator.
Conforme publicação do site Pesquisa Fapesp, o hambúrguer holandês custou 250 mil euros (algo em torno de R$ 1,1 milhão), financiados, principalmente, pelo cofundador do Google, Sergey Brin. Com o objetivo de colocar o produto no mercado, Post criou a empresa Mosa Meat, nascida como uma spin-off da Universidade de Maastricht.
Em julho de 2018, para continuar o desenvolvimento do produto e iniciar sua comercialização, a startup captou 7,5 milhões de euros do Bell Food Group, líder no mercado de carnes na Suíça, e da holandesa M Ventures.
Pioneirismo lá fora
Ainda considerada uma novidade no Brasil, o hambúrguer vegetal que imita carne bovina existe há três anos, nos Estados Unidos. De acordo com o site Pesquisa Fapesp, a Beyond Burger foi a primeira empresa a ter seu hambúrguer à base de plantas vendido em redes de supermercados naquele país.
Em 2019, tornou-se a primeira fabricante de carne vegetal com ações na bolsa norte-americana Nasdaq. Além de hambúrguer, a companhia vende carne moída e salsicha preparadas mediante uma combinação de fontes proteicas vegetais.
Já a startup Californiana Impossible Foods vai além, ao produzir um hambúrguer de cor vermelha, conseguida a partir de uma proteína similar à hemoglobina e produzida por engenharia genética. Os pesquisadores da empresa usam um componente da hemoglobina – o grupo heme –, que confere a cor vermelha de carne crua e o cheiro característico exalado durante o cozimento.
Poder das raízes
Raízes de plantas leguminosas têm o grupo heme em uma proteína de estrutura e função muito semelhantes à hemoglobina: a leg-hemoglobina.
Com base nesse conhecimento, os cientistas da Impossible Foods criaram um método de produção em alta escala do grupo heme, extraindo-o de raízes da soja. Por meio da engenharia genética, eles modificaram a levedura Pichia pastoris para que ela produzisse leg-hemoglobina de soja e a cultivaram em fermentadores para multiplicar a proteína.
Bife de laboratório
Ainda conforme publicação do site Pesquisa Fapesp, no final do ano passado foi a vez da israelense Aleph Farms anunciar a criação do primeiro bife cultivado em laboratório.
CEO da empresa, Didier Toubia contou, na ocasião, que a ideia de pesquisar carne cultivada a partir de células animais surgiu em 2016. O projeto se concretizou na Faculdade de Engenharia Biomédica do Instituto de Tecnologia de Israel (Technion).
O custo do protótipo – uma pequena tira de bife de algumas dezenas de gramas – foi de 50 dólares, valor ainda bastante alto quando comparado ao da carne vendida em açougues. No entanto, ele apresentou um avanço em relação ao despendido para a produção do hambúrguer da Universidade Maastricht, na Holanda. A novidade deve chegar ao mercado em até cinco anos.
De acordo com a Fapesp, o processo de produção de um bife in vitro é mais complexo e requer que as células se organizem de forma tridimensional (3D), ganhando volume e, consequentemente, espessura. Para isso, é necessário colocá-las em uma estrutura que serve como suporte – denominado scaffold (andaime) – que, normalmente, é produzida a partir de colágeno, de origem animal.
Para fabricar “carne limpa”, no entanto, é importante que não existam insumos animais nem procedimentos vinculados a eles. Esses pré-requisitos têm estimulado o surgimento de empresas que apresentem novas tecnologias, segundo a Fapesp.
Caso brasileiro
Uma startup criada para fornecer scaffolds à base de plantas, a esse tipo de indústria, é a brasileira Biomimetic Solutions, uma spin-off nascida no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG).
“Criamos um nanomaterial à base de plantas contendo moléculas naturais bioativas. Somos uma das primeiras empresas no mundo especializada na produção de scaffolds com foco na produção de carne limpa”, garante Lorena Viana, mestre em Inovação Tecnológica e Propriedade Intelectual, pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Sócia-fundadora da Biomimetic Solutions, ao lado das engenheiras de materiais Ana Elisa Antunes e Alana Benz, além de outras duas pesquisadoras do Cefet-MG, Aline Bruna da Silva e Roberta Viana, Lorena explica terem decidido por esse novo negócio, que envolve o mercado de carne in vitro, por causa da pouca concorrência no Brasil, bem como a possibilidade de atuar em um mercado altamente disruptivo e com perspectiva global.
Também diretora comercial do negócio, ela cita que a Mosa Meat e a Aleph Farms já desenvolvem seus próprios scaffolds.
Sociedade da Agricultura Celular
Com o intuito de estimular ainda mais a agricultura celular – campo em que se insere o desenvolvimento de carne cultivada em laboratório –, foi criada a Sociedade de Agricultura Celular (CAS, na sigla em inglês), em 2016, nos Estados Unidos.
“Em todo o mundo, apenas a América Latina ainda não desenvolveu projetos de carne in vitro”, ressalta Matheus Saueressig, aluno de Ciências da Computação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e diretor de Comunicações da CAS na América do Sul.
Ele alerta para o fato de que “o Brasil é o maior processador de proteína animal do mundo e corre o risco de perder esse novo mercado”.
Outras startups
De acordo com publicação do site Pesquisa Fapesp, startups dedicadas à pesquisa e fabricação de “carne limpa”, conforme relata Saueressig, vêm recebendo investimentos de empresas de capital de risco; de empresários bilionários como Richard Branson e Bill Gates (fundador da Microsoft), que têm participação na Memphis Meat, com sede na Califórnia; e de multinacionais do setor alimentício, entre elas a Cargill, Bell Food Group e Tyson Foods.
Para ele, ao apoiar os novos fabricantes de “carne limpa”, os grandes processadores de carne bovina, querem colocar um pé nesse mercado para não ficarem de fora, caso o negócio dê certo. Por enquanto, as alternativas vegetais dominam o promissor mercado de possibilidades à carne bovina.
Um estudo da consultoria Nielsen revelou que os norte-americanos gastaram 670 milhões de dólares em produtos de origem vegetal similares à carne bovina, apenas no primeiro semestre de 2018. Veganos e vegetarianos representam somente 5% da população daquele país.
Negócios dedicados à produção de carnes baseadas em células-tronco miram um mercado bem maior. A carne bovina deverá ser responsável por uma receita de 2,1 trilhões de dólares em todo o mundo, até 2020, conforme aponta a consultoria Grand View Research (EUA).
Polêmicas e desafios
Apesar das boas perspectivas desse mercado de alimentos cell-based e plant-based, já existem reações que polemizam a “nova onda vegana”. A Fapesp ressalta que o termo “carne limpa”, por exemplo, vem sendo contestado tanto por veganos quanto por pecuaristas.
Os primeiros são contra o uso do adjetivo “limpa”, quando há qualquer tipo de uso de células extraídas de animais, enquanto a indústria de proteínas animais se opõe ao emprego da palavra “carne”, por temer a concorrência.
Ao Departamento de Agricultura norte-americano, a Associação de Pecuaristas dos Estados Unidos pleiteou que produtos não derivados de animais criados ou abatidos sejam impedidos de serem descritos como bife ou carne. Com isso, a instituição quer diferenciar o alimento que a pecuária tradicional produz dessa “novidade vegana”, que está entrando no mercado.
De acordo com a Fapesp, um dos maiores desafios das novas empresas não é comercial, mas científico, levando em conta que elas precisam garantir que o processo de produção não faça uso de nenhum componente de origem animal.
Substitutos
No primeiro hambúrguer in vitro do mundo, o fisiologista holandês Mark Post – precursor da “carne de laboratório” – usou soro bovino fetal para nutrir as células-tronco. Hoje, as empresas Mosa Meat e Aleph Farms garantem que não utilizam mais ingredientes derivados de animal.
Para o médico veterinário Flávio Vieira Meirelles, da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da Universidade de São Paulo (FZEA-US P), no entanto, é muito difícil substituir aminoácidos, proteínas, açúcares, vitaminas e fatores de crescimento encontrados no sangue animal por substâncias isoladas de plantas.
“Existem alternativas ao soro fetal, mas também têm origem animal. E há várias outras substâncias retiradas de animais envolvidas nas diferentes etapas do processo”, avalia Meirelles.
Em sua opinião, “deve levar tempo até que se consiga fazer o cultivo celular em escala industrial, com um custo viável que seja completamente livre de produtos de animais”.
Carne de frango e pato
Algumas foodtechs – como as norte-americanas Just e Memphis Meats – estão investindo pesado para produzir carne em laboratório, sem fazer sequer uma simples biópsia no animal. Essas empresas, segundo publicação do site Pesquisa Fapesp, utilizam células-tronco coletadas de penas do animal para produzir carne de frango.
A Just comercializa alimentos vegetais alternativos aos de origem animal, como a maionese. A Memphis Meats, por sua vez, dedica-se à pesquisa de diversos tipos de carne em laboratório, incluindo frango e pato.
Diretora associada de Ciência e Tecnologia do The Good Food Institute (GFI) nos Estados Unidos, Liz Specht provou, em 2017, a carne de pato feita a partir de células-tronco, da Memphis Meats.
“O que mais me impressionou foi a textura. Quando você morde fibras musculares, percebe uma elasticidade própria e a carne baseada em células, que comi, tinha a mesma qualidade”, conta Liz, lembrando que “a carne estava empanada e tinha um molho”.
“Por isso, foi um pouco difícil avaliar o sabor dela em si, mas a textura era inconfundível.”
Consumo é seguro?
Outro desafio dos fabricantes de carne in vitro é provar que o produto é seguro ao consumo humano. “Eles terão de identificar claramente quais as substâncias são empregadas no processo de diferenciação celular, comprovando a segurança e a qualidade nutricional”, pondera a bioquímica Viviane Abreu Nunes Cerqueira Dantas, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP).
A pesquisadora vê com desconfiança a alegação, comum entre as startups do setor, de que a carne de laboratório, ao contrário do produto oriundo de abate, dispensa o uso de antibióticos.
“Em um primeiro momento, a produção de carne in vitro, em grande escala, não poderá prescindir do uso de antibióticos para o cultivo das células. Desconheço, entretanto, quais outras substâncias estariam sendo usadas com esse mesmo efeito no contexto da produção da carne de laboratório”, avalia Viviane.
Para a bioquímica, os produtos cárneos – particularmente aqueles que passam por maior manipulação – constituem um excelente meio de cultura de microrganismos, devido à elevada umidade, ao pH próximo da neutralidade e à composição rica em nutrientes.
Coordenador de Inovação do GFI Brazil, Felipe Krelling informa que antibióticos podem ser utilizados por um período curto, como forma de minimizar riscos de contaminação, ao separar uma linha celular de uma biópsia, caso ela esteja contaminada por alguma bactéria.
“Não há nenhuma necessidade de se utilizar antibióticos em qualquer outro processo de produção. Já existe tecnologia na indústria de bioprocessos que pode ser adotada por empresas cell-based, para se obter um ambiente livre de antibiótico para a proliferação de células”, garante Krelling.
‘Ovo’ que não vem da galinha
O mercado de plant-based e cell-based tem ido além da produção da carne de laboratório. Veganos, por exemplo, não consomem nenhum produto que venha de animais – e isso inclui tanto as carnes em geral quanto ovos, mel, leite e seus derivados –, além de roupas e calçados que representem esse mesmo estilo de vida.
Para atender a um público tão específico e cada vez mais crescente, as empresas vêm investindo em outras novidades, como é o caso do N.ovo, lançado neste ano pelo Grupo Mantiqueira, maior distribuidor de ovos vindos da galinha em todo o País.
Produzido no formato em pó, segundo a empresa, o N.ovo é capaz de substituir os ovos em diversas receitas como tortas, bolos, salgados e outras massas. Por ser um alimento exclusivamente à base de vegetais, ele atende tanto ao público vegetariano e vegano quanto aos alérgicos, além de ser uma opção para quem deseja reduzir o consumo de colesterol.
O The Good Food Institute participou desse projeto desde seus estágios iniciais, com o objetivo de expandir a oferta de produtos a partir de vegetais. Para o GFI, esse novo produto também serve de exemplo para que outras empresas de proteínas convencionais vislumbrem a oportunidade de fazer parte dessa revolução na indústria de alimentos.
Destaque na América Latina
Desde o lançamento, a Mantiqueira passou a ser considerada pioneira nesse tipo de biotecnologia, que envolve a produção de novos alimentos em toda a América Latina, sendo a primeira grande companhia privada a oferecer substitutos vegetais para ovos.
Gestora de Novos Projetos do grupo, Amanda Pinto salienta a importância de sempre atender à necessidade de diferentes públicos.
“Desenvolver versões veganas de alimentos tradicionais já é uma tendência do mercado, e nós decidimos apostar nesse novo produto. Boa parte da demanda vem de pessoas não veganas, que associam o veganismo com saudabilidade ou que decidem fazer uma opção mais sustentável de consumo, ocasionalmente, além dos intolerantes e alérgicos ao alimento”, ressalta Amanda, relatando que foram necessários dois anos para encontrar ingredientes substitutos e chegar à formulação ideal do N.ovo.
Feito com poucos e selecionados ingredientes em sua fórmula, o produto da Mantiqueira tem como base o amido de ervilha, a proteína de ervilha, linhaça dourada integral e moída, além de um mix de fermentos.
“A ervilha é uma fonte riquíssima de proteína de origem vegetal. É uma ótima opção para quem é vegano ou possui algum tipo de intolerância ou alergia à proteína presente no ovo”, reforça a gestora.
Segundo ela, “essa leguminosa, usada no N.ovo, passa por um procedimento complexo, feito em laboratório, que isola a proteína dos demais nutrientes”. “O produto não é ovo em pó, mas sim um substituto à base de plantas.”
Preparos
De acordo com Amanda, o N.ovo não substitui os ovos no preparo de omeletes ou ovos mexidos e também não possui as mesmas propriedades do ovo em casca, ou seja, não possui o mesmo valor nutricional.
“Uma característica se destaca, no entanto: além de ser inodoro, enquanto o ovo in natura tem a validade aproximada de 28 dias, o N.ovo dura dez meses, após a fabricação.”
A gestora também informa a proporção do uso do produto em receitas de bolos, tortas e afins: um ovo de 50 gramas equivale a 11 gramas de N.ovo mais 39 mililitros de água.
“Conseguimos chegar a uma concentração proteica de até 80%, o que garante que a fórmula funcione e tenha a aplicação que precisamos. Um pacote do N.ovo equivale a 12 ovos tradicionais”, informa Amanda.
Onde comprar
No varejo, o preço sugerido para comercialização do N.ovo é de R$ 19,90. Conforme a executiva, ele já está presente em mais de 700 pontos de vendas em seis Estados brasileiros, como grandes redes de supermercados – Uno, Prezunic, Mundial, Zona Sul, Verdemar e Pão de Açúcar – e também em lojas de conveniência, como o Organomix e La Fruteria.
“A meta é chegar a mais de dois mil (unidades de N.ovo) até o final do ano. Já estamos conversando com clientes de países como Nova Zelândia, Dubai e Chile. Então, provavelmente, estaremos nesses países, em breve. Nosso produto é indicado tanto para estabelecimentos comerciais, como restaurantes e padarias, quanto para uso caseiro.”
Amanda adianta que, no momento, o setor de Inovação, Pesquisa & Desenvolvimento do Grupo Mantiqueira está em fase de desenvolvimento de um substituto para o ovo de mesa, que poderá ser usado no preparo de omeletes e ovos mexidos, com textura e sabor igual ao ovo.