Biotecnologia ajudará a desenvolver novos alimentos no Brasil e no mundo para os próximos anos, como uma das soluções para o combate à fome e à desnutrição, podendo garantir a segurança alimentar da população
Cell-based, plant-based, carne de laboratório – ou carne limpa –, além de ovos que não vêm da galinha, são algumas das mais recentes novidades do mercado envolvendo a área de biotecnologia para o setor alimentício.
Apontados por especialistas como os “novos alimentos” produzidos pela chamada “agricultura celular”, esses produtos são vistos como fortes aliados da alimentação e nutrição humana, podendo garantir, em um futuro bem próximo, a segurança alimentar de populações que ainda sofrem com a fome e a desnutrição.
Em resumo, a agricultura celular é uma técnica científica de tecnologia avançada, pela qual são cultivadas células de carne em laboratório, sem origem animal.
A princípio, essas propostas inovadoras envolvem alimentos desenvolvidos a partir de plantas, que podem substituir diretamente outros, de origem animal – como carnes, frutos do mar, ovos e laticínios –, conforme explica Felipe Krelling, coordenador de Inovação da The Good Food Institute (GFI), a instituição internacional que também atua no Brasil.
Pesquisa
Encomendados pelo GFI e pela Plant-based Foods Association, dados recentes mostram que o mercado de varejo de comida à base de vegetais nos Estados Unidos, por exemplo, chega à marca de 4,5 bilhões de dólares – um crescimento cinco vezes mais rápido em comparação às vendas totais de outros tipos de alimentos, em território norte-americano, só no ano passado. E o Brasil, está preparado para essa revolução da agricultura celular?
“Analisando todo o contexto da cadeia da nossa indústria de alimentos, aferimos que a produção e o consumo de produtos de origem animal convencionais causam grande impacto ambiental, despendendo recursos naturais, devastando muito e produzindo pouco”, avalia Krelling.
Como alternativa a produtos de origem animal, o executivo explica que os alimentos plant-based são concebidos a partir de vegetais: “Um leite plant-based, por exemplo, poderia ser um leite de amêndoas ou de soja”.
Na área de plant-based e cell-based, segundo Krelling, os norte-americanos estão bem à frente do Brasil, considerando que apenas recentemente foram feitos lançamentos de alimentos do gênero, a exemplo dos hambúrgueres sem origem animal do Burguer King e da Fazenda do Futuro.
“Nos EUA, já existem hambúrgueres plant-based elaborados pelas empresas Beyond Meat e Impossible Foods, que possuem textura, sabor, suculência e aroma que o consumidor não sabe dizer se é de planta ou se os ingredientes vieram de um animal”, relata o coordenador do GFI.
Em sua visão, apesar de envolver muita tecnologia, “o produto final é totalmente escalável e fica com preço competitivo aos convencionais”.
“De modo geral, alimentos plant-based podem ser muito mais saudáveis, pois não possuem colesterol, que é o único oriundo de produtos de origem animal. Também tendem a ter menos gorduras saturadas e calorias com teores maiores de vitaminas e nutrientes benéficos para nossa saúde.”
Flexitarianismo
Assessor de política (policy advisor) do GFI Brazil, Alexandre Cabral ressalta que a instituição sugere a adoção de alimentos substitutos mais sustentáveis para a carne, leite e ovos. “Adiantamos que não queremos criar uma cadeia que irá substituir o agronegócio, mas promover um perfil de pessoas ‘flexitarianas’ saudáveis.”
Expressão que ainda não existe no dicionário português, o flexitarianismo é derivado de flexitarian – palavra formada pela junção, em inglês, de “flexível” e “vegetarianismo” – e que faz referência a pessoas que estão reduzindo o consumo de carne, sem excluí-la totalmente do cardápio.
O flexitariano, portanto, é aquele indivíduo que segue uma dieta vegetariana na maior parte de seu tempo, no entanto, de vez em quando, consome algum tipo de proteína animal.
Números
Antes de tratar da relevância da biotecnologia na produção dos chamados “novos alimentos”, é necessário citar alguns dados. Números de 2018 divulgados pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), em pesquisa encomendada pela Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB), por exemplo, indicam que os vegetarianos e/ou veganos representem algo em torno de 29,2 milhões de pessoas, ou seja, quase 14% da população brasileira.
A pesquisa também mostra que, nas regiões metropolitanas de São Paulo, Curitiba, Recife e Rio de Janeiro, o percentual de vegetarianos é de 16%. Isso representa um crescimento de 75% em relação a 2012, quando o mesmo levantamento indicou que a proporção da população nessas regiões, que se declarava vegetariana e/ou vegana, era de 8%.
Ainda conforme o estudo, quase 30 milhões de brasileiros se declararam adeptos a esse tipo de dieta alimentar – um número superior ao de populações de toda a Austrália e Nova Zelândia, juntas.
A SVB ainda destaca que a pesquisa do Ibope não separou, entre os entrevistados, quem se declarava vegetariano e/ou vegano.
Dietas mais saudáveis
Um estudo publicado em 2017, pela revista Nature, mostra que as mudanças globais em torno das dietas mais saudáveis e baseadas em vegetais – associadas à redução pela metade das perdas e desperdícios de alimentos e melhores tecnologias e práticas agrícolas – serão necessárias para alimentar dez bilhões de pessoas de forma mais sustentável, ate 2050.
Financiado pela EAT como parte da Comissão EAT-Lancet para Alimentos, Planeta e Saúde e pela parceria “Nosso Planeta, Nossa Saúde” da Wellcome sobre Pecuária Ambiente e Pessoas, o estudo combinou contas ambientais detalhadas com um modelo do sistema global de alimentos, que rastreia a produção e o consumo de alimentos em todo o mundo.
Por esse modelo, os pesquisadores, que analisaram várias opções que poderiam manter o sistema alimentar dentro dos limites ambientais, descobriram que:
- As alterações climáticas não serão suficientemente mitigadas sem mudanças na dieta para dietas mais baseadas em vegetais. Adotar dietas mais “flexitárias”, baseadas em vegetais em todo o mundo, poderia reduzir as emissões de gases de efeito estufa (GEEs) em mais da metade e também reduzir outros impactos ambientais, como a aplicação de fertilizantes e o uso de terras cultiváveis e água doce, entre um décimo e um quarto.
- Também é necessário melhorar as tecnologias e práticas de manejo na agricultura para limitar as pressões sobre terras agrícolas, extração de água doce e utilização de fertilizantes. Aumentar a produtividade dessas terras, equilibrar a aplicação e a reciclagem de fertilizantes e ainda melhorar a gestão da água poderiam, em conjunto com outras medidas, diminuir esses impactos em cerca de metade.
- E necessário reduzir pela metade a perda de alimentos e o desperdício para manter o sistema alimentar dentro dos limites ambientais. Isso poderia, se alcançada globalmente, diminuir os impactos ambientais em até um sexto (16%).
Como alimentar o mundo?
Pesquisadores do mundo e do Brasil – que atuam no The Good Food Institute, Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Centro de Inteligência em Biotecnologia (CIB), entre outras instituições – vêm defendendo o uso da biotecnologia na produção de alimentos, principalmente porque será necessário produzir mais em campo, sem aumentar a área agrícola, considerando que diversos países não dispõem de grandes extensões territoriais para esse fim.
Uma estimativa da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) mostra que, até 2050, o planeta terá 2,2 bilhões a mais de pessoas em relação aos números de hoje. E para combater a fome, garantindo a nutrição e ainda a segurança alimentar, é necessário desenvolver “outro tipo de agricultura”.
“Precisamos incentivar a educação e a informação para a educação, de forma a quebrar paradigmas e preconceitos, a partir da construção, em cenário global, da produção de alimentos [também] a partir da ‘agricultura celular’, que consiste na multiplicação científica de células, a exemplo da ‘carne de laboratório’ ou da chamada ‘carne limpa’”, diz o assessor de política do GFI no Brasil, Alexandre Cabral.
Diferença entre vegetarianismo e veganismo
O vegetarianismo, conforme define a Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB), é um regime alimentar que exclui todos os tipos de carnes, sendo dividido da seguinte forma: ovolactovegetarianismo, que consome ovos, leite e laticínios; lactovegetarianismo, que utiliza leite e laticínios na alimentação; ovovegetarianismo, que usa ovos em sua dieta; e vegetarianismo estrito (tipo de consumo defendido pela instituição), que não come nenhum produto de origem animal.
Já o veganismo, segundo definição da Vegan Society, é um modo de viver (ou poderia chamar apenas de “escolha”) que busca excluir, na medida do possível e praticável, todas as formas de exploração e crueldade contra os animais – seja na alimentação, no vestuário ou em outras esferas do consumo.
(Fonte: SVB)
Novos conceitos
O The Good Food Institute – tanto aqui quanto no exterior – trabalha com novos conceitos de alimentação, como o flexitarianismo (tipo de dieta mais flexível que o vegetarianismo, com foco na redução do consumo de carne e não em sua total exclusão).
Também atua com o conceito de plant-based – alimento feito à base de vegetal/planta que pode substituir, nutricionalmente, o de origem animal; e cell-based – outra proteína alternativa produzida a partir de células desenvolvidas por cientistas, a exemplo da carne limpa ou carne de laboratório.
Coordenador de Inovação do GFI, Felipe Krelling afirma que essas novas tecnologias, que envolvem a agricultura celular, satisfazem o consumidor final tão bem quanto os produtos convencionais, sem trazer as consequências negativas da produção e escalabilidade como a pecuária convencional.
“É muito mais que possível alimentar todas as pessoas do mundo com comida saborosa, convencional e preços competitivos, por meio da inovação e novas tecnologias”, garante o executivo.
Cell-based meat
Um recente estudo da Universidade de Harvard (EUA) – intitulado “90 razões para considerar a agricultura celular” (https://dash.harvard.edu/handle/1/38573490), foi feito para mostrar as vantagens relacionadas ao investimento e desenvolvimento de carnes à base de células (cell-based meat), conforme publicou a Agência de Notícias de Direitos Animais (Anda), em abril deste ano.
Segundo a Anda, o estudo norte-americano descreve que esse segmento da biotecnologia dos alimentos “tem o potencial de influenciar nos problemas da saúde pública, do meio ambiente e dos direitos humanos/animais em uma escala notável, colocando a descoberta em uma classe sem precedentes e, verdadeiramente, capaz de revolucionar o mundo”.
Ainda leva em conta os benefícios para a saúde oferecidos pela carne cultivada em laboratório, tais como: eliminar a necessidade de antibióticos, reduzir o risco de contaminação e possibilidade de alergias no organismo humano, além de fornecer proteínas para a população mundial, que permanece em crescente aumento.
Meio ambiente
Conforme a Anda, o estudo de Harvard também indica as vantagens da agricultura celular para o meio ambiente, considerando que utiliza, significativamente, menos terra e água, emite uma fração mínima de gases de efeito estufa e diminui a poluição, quando comparada à agricultura tradicional.
As razões citadas no estudo, segundo a Agência de Notícias de Direitos Animais, também consideram as vantagens financeiras para a indústria da agricultura celular, levando em conta que uma produção mais controlada economiza dinheiro, reduz o desperdício, fornece uma qualidade consistente do produto e ainda evita os impostos sobre o carbono, diante do menor impacto ambiental.
Novos alimentos
Para a produção desses novos alimentos, desenvolvidos em laboratórios, o uso da biotecnologia é fundamental para a agricultura celular.
“A ‘carne limpa’, por exemplo, é resultado de pesquisas de biotecnologia. Ao invés precisarmos de todo um processo para engordar animais, para abatê-los e depois obtermos a carne, é possível conseguir o produto sem essas fases e com muito mais rapidez”, afirma Felipe Krelling.
Segundo ele, “o custo para escalar soluções mais sustentáveis era muito maior, antigamente, porque não havia demanda nem conscientização suficientes dos governos e das indústrias para que tais mudanças aconteçam imediatamente”.
“A biotecnologia está na base do desenvolvimento de novos produtos que substituem e oferecem, cada vez mais, oportunidades para quem já está na indústria de alimentos”.
De acordo com Krelling, “a entrada desse tipo de comida no mercado está cada vez mais fácil, considerando que o número de consumidores conscientes – aqueles que buscam saber a origem e o processo dos produtos finais na indústria – está muito maior, tendendo a crescer ainda mais”.
Cenário varejista
Na opinião de Caroline Bushnell, diretora associada de Engajamento do The Good Food Institute (conforme publicado pelo GFI, em seu site oficial: www.gfi.org.br), “já estamos vendo o impacto que o espaço estratégico de prateleira pode ter”.
Isso porque, de acordo com a executiva, o varejo total de carne à base de vegetais vale, atualmente, 800 milhões de dólares, representando 2% das vendas de carne embalada do mercado de varejo dos EUA.
Segundo Caroline, estrategicamente falando, “se antes esses produtos ficavam meio escondidos nas prateleiras dos supermercados, agora os varejistas têm posicionado a carne à base de vegetais na seção do refrigerador, ao lado da carne convencional de animais”. Ou seja, isso facilita o acesso dos consumidores a esses alimentos ao colocarem em um local mais visível nas gôndolas.
Por conta desse posicionamento físico, consequentemente, as vendas de carne refrigerada feita de vegetais aumentaram 37% no ano passado, em território norte-americano. Para a executiva, o Brasil deve seguir essa mesma tendência.
“É apenas o começo de um período de grande crescimento para os alimentos vegetais. O apetite dos consumidores por alimentos dessa natureza (cell-based e/ou plant-based) se potencializa, conforme os consumidores vão mudando, progressivamente, para alimentos que combinem valores e desejos por opções mais sustentáveis”, comenta Caroline.
Nomes mais acessíveis
Na visão do coordenador de Inovação do GFI Brazil, Felipe Krelling, a biotecnologia tem favorecido a produção da “carne limpa”, cell-based e plant-based. No entanto, algumas nomenclaturas – ainda em inglês – devem ser “abrasileiradas” para que tenham mais apelo junto aos consumidores daqui. Inclusive, ele acredita que a “carne de laboratório” deva ganhar outro nome, que seja mais atrativo.
“Esses alimentos serão produzidos em escala e em fábricas limpas, similares às da cerveja. Todas as comidas começam em um laboratório de alimentos, mas nem por isso chamamos salgadinhos de ‘salgadinhos de laboratório’. Veremos esforços e teremos pesquisas de consumidores para definir e encontrar palavras melhores (do que cell-based e plant-based, por exemplo) e que façam mais sentido em português.”
Laticínios
Dentro das técnicas da biotecnologia dos alimentos, segundo o The Good Food Institute, o leite à base de plantas continua definindo a curva para as vendas no varejo de alimentos de origem vegetal, representando 13% das vendas totais de leite no varejo, atualmente.
De acordo com o GFI, o crescimento foi de 6%, em 2018, contra uma queda nas vendas de leite de vaca em torno de 3%, que também tiveram o mesmo percentual de redução no ano anterior.
Nesse sentido, a instituição indica novas categorias de laticínios feitos de vegetais (ou seja, que não levam leite), como iogurtes, queijos e sorvetes. A busca por esses produtos está crescendo ainda mais rápido, conforme mais famílias vêm descobrindo tais opções à base de plantas.
O The Good Food Institute destaca números que corroboram para o crescimento no consumo de alimentos cell-based e plant-based:
- O iogurte vegetal cresceu 39% no ano passado (o iogurte convencional caiu 3%);
- O queijo à base de plantas aumentou a procura em 19% (o queijo convencional permaneceu plano);
- O sorvete à base de vegetais teve crescimento de demanda de 27% (o convencional teve alta de 1%).
O coordenador de Inovação do GFI Brazil também comenta a possibilidade de produzir ovos (que não vêm da galinha) e similares aos lacticínios (sem leite): “Cientistas usam micróbios – a levedura é um exemplo comum – para produzir leite puro, ovos e proteínas de colágeno, em uma instalação limpa. Esse processo é o mesmo já usado, há décadas, para obter remédios como a insulina e enzimas.
Mudanças de hábitos
Embora os alimentos plant-based e cell-based ainda sejam desconhecidos, Felipe Krelling acredita que “a proposta mais viável é entregar os produtos que as pessoas estejam acostumadas, mas com novas tecnologias de alimentos”.
“Não defendemos, necessariamente, mudanças de hábitos, mas um movimento de inovação que entregue maior quantidade de alimentos mais sustentáveis, saborosos e acessíveis a todos. Produtos inovadores, como carnes limpas e proteínas vegetais, são oportunidades que permitem, à sociedade, manter seus hábitos alimentares ao mesmo tempo em que passam a comprar e consumir produtos mais saudáveis e sustentáveis.”
No entendimento do executivo, “essas novas tecnologias não apenas permitem que a indústria consiga alimentar mais de dez bilhões de pessoas, até 2050, mas também oferecem as mesmas características dos produtos já consumidos em nossas casas e restaurantes, sem precisar de mudanças relevantes no dia a dia de qualquer pessoa”.
Ele destaca, mais uma vez, que o GFI – tanto aqui quanto no exterior – “propõe que os alimentos preferidos dos consumidores sejam produzidos com outras tecnologias, fazendo com que não se desperdicem tanta terra, água e recursos naturais”.
“Grande parte das plantações é utilizada para alimentar animais. Há relatórios que mostram que entre 50% e 60% dos grãos plantados, mundialmente, sejam usados para alimentar animais de fazenda. Em calorias, nós produzimos aproximadamente dez calorias de vegetais para ter apenas uma caloria de carne de vaca.”
Krelling acrescenta que, “ao utilizar essas terras e recursos naturais, para produzir alimentos exclusivamente para as pessoas, e retirar os animais dessa equação, teremos muito mais espaço, recursos e oportunidades para produzirmos comida de formas mais eficientes”.
Para mais informações, acesse https://gfi.org.br.