Embora a água tenha sido considerada, tempos atrás, um recurso natural infinito, há algumas décadas o mundo passou a compreender que o mau uso desse bem, que não é inesgotável, pode ocasionar sua escassez. Foi por essa razão, inclusive, que a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu 22 de março como o Dia Mundial da Água.
“O intuito foi alertar a população sobre a necessidade de refletir sobre a importância da preservação da água para a sobrevivência dos ecossistemas e sobre as medidas práticas a serem adotadas”, ressalta o advogado Marcelo Buzaglo Dantas, pós-doutor em Direito Ambiental, Transnacionalidade e Sustentabilidade, professor visitante da Universidad de Alicante (Espanha) e da Delaware Law School (Estados Unidos).
Membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza da Fundação Grupo Boticário, ele ressalta que, no campo jurídico, é necessário aproveitar esta oportunidade para debater o que houve de progresso, nos últimos anos, em termos de políticas públicas de gestão da água, em especial após o Brasil sediar, pela primeira vez, o Fórum Mundial da Água, em 2018.
Compromisso do Brasil
“Entre os diversos produtos do referido Fórum, merece destaque o compromisso do governo federal de adotar políticas e planos nacionais de gestão integrada de recursos hídricos a fim de garantir o direito constitucional de acesso à água”, destaca Dantas.
Ele pondera, no entanto, ao se referir a um balanço de 2018: “Nota-se que, embora haja uma quantidade significativa de projetos de lei sobre a correta gestão da água, pouco se evoluiu efetivamente em termos práticos, em especial no que se refere ao desenvolvimento de estratégias potenciais como educação, transferência de tecnologia, incentivos econômicos, mercados, dentre outros”.
Melhor gestão continua só no papel
“Embora o governo anterior tenha iniciado o processo de revisão e atualização do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab) e de seu marco legal, por meio da Medida Provisória nº 868/2018, os projetos de lei que preveem incentivos econômicos e subsídios para adoção de tecnologias mais sustentáveis, no que tange à gestão da água, não saíram do papel”, critica o especialista.
Segundo ele, projetos de lei como o PL nº 495/2017, que regulamenta a criação de um “mercado de água”, e os de nºs 5733/2009, 182/2015 e 377/2015, entre outros, “que regulamentam incentivos à adoção de práticas mais sustentáveis, não evoluíram no Legislativo”.
Políticas públicas
Em sua opinião, “não dá para discutir uma gestão eficiente da água, se não pensarmos na aplicação de políticas públicas integradas, articuladas e intersetoriais”. Ele cita como exemplo o Projeto Oásis, desenvolvido há 12 anos pela Fundação Grupo Boticário.
“Trata-se de um instrumento de política pública econômica o Pagamento por Serviços Ambientais, que promove a valorização dos ambientes naturais por meio de mecanismos de incentivo financeiro a proprietários, que se comprometam com a conservação das áreas naturais e a adoção de práticas conservacionistas de uso do solo.”
Dantas menciona outro exemplo que vem da capital do Japão, Tóquio, que investiu em tecnologias limpas e ainda inseriu a temática de educação ambiental nas escolas do município, desde a década de 1970, criando, inclusive, programas de capacitação técnica.
“Nota-se, portanto que, apesar de as discussões terem avançado, a gestão eficiente da água ainda depende de políticas públicas regionais e setoriais de amplo descortino político, e que não apenas punam, mas também incentivem a adoção de técnicas de preservação ambiental. Sem incentivos econômicos e educação ambiental, não há como se discutir melhorias na gestão eficiente da água no Brasil”, sentencia o pós-doutor em Direito Ambiental.
Para mais informações sobre as atividades da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza da Fundação Grupo Boticário, acesse www.fundacaogrupoboticario.org.br.
Ainda falta água para muitas pessoas
O tema escolhido pela ONU para reflexão em 22 de março de 2019 – “Water for all: living no one behind” (“Água para todos: não deixando ninguém para trás”, em tradução livre para o português), lembra algo interessante.
“O ato quase mágico da água surgindo de uma torneira, ao qual estamos acostumados, não é uma realidade para considerável parte da população mundial”, comenta engenheiro civil especialista em saneamento Luciano Zanella, pesquisador do Laboratório de Instalações Prediais e Saneamento do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), vinculado à Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo.
Se nos dias de hoje a falta de água potável parece um cenário muito distante da realidade, basta relembrar o que ocorreu há pouco tempo, nos anos de 2014 e 2015, quando diversas regiões paulistanas, por causa da estiagem prolongada, ficaram desabastecidas, chegando a níveis bem críticos de escassez.
“Nessa época, para muitos de nós, o simples ato de lavar roupas ou tomar um banho tornou-se um desafio diário”, comenta Zanella.
Histórico recente
Para o engenheiro civil Wolney Castilho Alves, especialista em Engenharia Sanitária e Ambiental e também pesquisador do IPT, situação muito comum pode ser observada em outras áreas do País.
“Dados [mais recentes] do Plano Nacional do Saneamento de 2013 mostram que no Brasil, em 2010, apenas 60% da população contavam com abastecimento adequado. Do restante, 64 milhões (33,9%) de brasileiros contavam com abastecimento precário e em torno de 13 milhões (6,8%) de pessoas sequer contavam com isso.”
De acordo com Alves, o caso mais emblemático em território nacional é o do Semiárido, “que enfrenta períodos de estiagem frequentes e problemas referentes à qualidade das águas nas fontes, muitas delas inadequadas ao consumo humano”.
Ainda há outras regiões onde “o acesso à água potável também não é fácil: muitas das comunidades ribeirinhas da região amazônica, povoados construídos praticamente sobre os grandes rios e igarapés, não têm acesso a ela”.
“Nesse caso, o fator limitante não é a falta do recurso, mas a qualidade da água disponível, muitas vezes imprópria para consumo devido a contaminantes”, comenta Alves.
Conforme o IPT, não é só em regiões distantes que isso ocorre: “Nas zonas rurais de muitos municípios ou até em alguns nichos específicos dentro de áreas urbanas, inclusive na região Sudeste, por uma série de motivos diferentes, muitas vezes o acesso à água é precário, limitado ou inexistente”.
“Uma vez que não existe solução que possa ser aplicada de modo amplo e indiscriminado, é preciso analisar cada situação. Soluções simples, implementadas com os cuidados técnicos necessários, muitas vezes podem ser as mais adequadas.”
Soluções
Pesquisador do IPT, Luciano Zanella ressalta que “o aproveitamento de águas de chuva, como forma de permitir o abastecimento mais seguro em locais onde o acesso à água potável é problemático, é um exemplo”.
“Intensamente adotado na região semiárida brasileira, também foi uma das soluções complementares de abastecimento mais utilizadas, durante o período de escassez hídrica, pela qual a região Sudeste passou entre 2013 e 2015.”
Por outro lado, diz Zanella, “soluções mais complexas exigem o manejo integrado de águas urbanas, abordando todo seu ciclo e estabelecendo alternativas para que as águas sejam utilizadas de forma eficiente”.
“Desenvolvimento, avaliação e uso de equipamentos sanitários economizadores; estruturação de programas de uso eficiente de água e acompanhamento de consumo; uso de fontes alternativas como forma de abastecimento complementar e até mesmo o manejo das águas de drenagem urbana; além do correto tratamento dos esgotos gerados para evitar a contaminação de mananciais podem fazer parte de programas mais complexos para locais onde existe o abastecimento de água potável, mas a disponibilidade hídrica torna-se crítica para guarnecer a população existente. É o caso de um bom número de regiões metropolitanas brasileiras.”
Remetendo ao tema de 2019 da ONU, para o Dia Mundial da Água, Zanella salienta que “não deixar ninguém para trás significa garantir a disponibilidade e o manejo sustentável da água para todos”, assim como estabelece o Objetivo 6 do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da agenda 2030 das Nações Unidas, “da qual o Brasil é um dos países signatários”.
“Significa olhar para esses locais e buscar alternativas efetivas para garantir o acesso à água, sempre empregando tecnologias adequadas.”
Para mais informações sobre as atividades do IPT, acesse www.ipt.br.
Engajamento das empresas
Se por um lado é preocupante a falta de melhor gestão pública da água, de forma mais ampla no Brasil, por outro, empresas mais conscientes vêm dando exemplo. De acordo com a Pesquisa Engajamento dos Pequenos Negócios Brasileiros em Sustentabilidade e aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis (ODS), realizada pelo Centro Sebrae de Sustentabilidade (CSS/Serviço de Apoio às Micros e Pequenas Empresas), 60% das empresas disseram que adotam alguma prática para economizar água.
A pesquisa realizada no ano passado aponta, porém, que a maior preocupação dos empresários de micro e pequenas companhias, entrevistados em todas as regiões brasileiras, é com o consumo e custos da energia: 88% declararam que possuem práticas para reduzir as contas mensais de energia ou 28% a mais do que ações em relação à gestão hídrica.
Do total de 1.887 empresários de micro e pequenos negócios, que responderam à pesquisa do Sebrae, 13% fazem tratamento e reuso de água de efluentes; 25% instalaram torneiras com acionamento automático; 29% possuem sistema de captação de água da chuva.
Ainda conforme o levantamento, 45% reaproveitam águas cinzas (de pias, chuveiro, entre outros) para fins não potáveis (lavagem de pisos, rega de plantas e jardins, lavagem de automóveis, etc.; e 48% instalaram vasos sanitários acoplados com descarga de duplo acionamento.
Captação de água da chuva
O Centro Sebrae de Sustentabilidade (CSS), unidade de referência nacional em sustentabilidade para o Sistema Sebrae e pequenos negócios do País, está localizado em Cuiabá, junto ao Sebrae de Mato Grosso. Tem como missão produzir e disseminar conhecimento no tema, visando à inclusão dos pequenos negócios na chamada “nova economia”, que está baseada em sustentabilidade e inovação.
Vencedor do prêmio BREEAM Awards 2018 em duas categorias (melhor edifício sustentável das Américas e voto popular), o prédio do CSS possui um sistema de captação e aproveitamento da água da chuva, que pode ser referência para o mercado e sociedade. Devido ao formato ogival da cobertura do edifício (como as casas indígenas), possui duas cascas (exterior e interior) espaçadas por cerca de 30 centímetros e com aberturas superiores, que permitem a entrada da água de chuva.
Por essa abertura, a água da chuva permeia a casca interior promovendo o resfriamento natural do prédio, ao mesmo tempo em que ela é direcionada para as calhas.
Tubulações conduzem a água ao filtro e, posteriormente, ao reservatório com capacidade para 16 mil litros. A água armazenada é aproveitada na manutenção do jardim, nas bacias sanitárias e limpeza do prédio, possibilitando economia de até 50% na demanda de água da rede.
Em abril, o CSS Sebrae completará oito anos de atividades. Para mais informações, acesse www.sustentabilidade.sebrae.com.