No Brasil, os produtores familiares representam uma grande base para a produção orgânica. Contudo, uma das características mais comuns é a dificuldade de estabelecimento de uma cadeia produtiva. Esse não é o caso da empresa gaúcha Ecobio, que alcançou esse objetivo e ainda manteve seu perfil familiar: filhos, pais e avó continuam trabalhando desde o plantio até a comercialização de seus produtos orgânicos.
Roberto Luiz Salet, engenheiro agrônomo e sócio da Ecobio traz para esta edição de A Lavoura a trajetória pioneira da empresa, que começou no setor em 1984, pesquisando e adaptando ao Brasil técnicas orgânicas aplicadas na Europa.
A Lavoura – Como se organiza estruturalmente a Ecobio?
Somos uma empresa familiar na essência. Fazem parte da sociedade dois filhos: eu, Roberto Salet, agrônomo, e Fernando Salet, médico, além de nossos pais, Angelo e Gladiz Salet e avó, Noilda Baraldi. A empresa faz algo raro no mundo atual da agricultura orgânica: planta, industrializa e comercializa o produto oriundo de sua propriedade, sem intermediários, mantendo o valor agregado ao longo da cadeia.
Estamos localizados no norte do Rio Grande do Sul, com lavouras e indústrias nas cidades de Coronel Bicaco, Cruz Alta, São Martinho e Santo Augusto, regiões de solos vermelhos e água abundante.
A Lavoura – Por que a decisão de começar a atuar no sistema orgânico já em 1984, algo inovador para o Brasil à época?
Iniciamos na produção de orgânicos no auge da propaganda da Revolução Verde no Brasil, na década de 80. A Revolução Verde pregava e financiava a substituição de culturas locais por culturas de exportação (soja), com o uso maciço de fertilizantes, corretivos industriais, fungicidas, inseticidas e herbicidas. Não se pode negar que a Revolução Verde aumentou a produtividade das culturas de exportação e mudou o perfil da agricultura brasileira. Entretanto, causou duas consequências sérias: a dependência do agricultor e a destruição do meio ambiente. O agricultor deixou de ser produtor para ser consumidor de insumos das transnacionais.
Em 1984, nossos vizinhos arrancavam as árvores de erva mate para plantar soja, usando insumos “modernos” como DDT, clorofosforados, fosforados, 2,4-D, etc. Enquanto isso, nós plantávamos estas mesmas mudas, pesquisávamos insumos e tecnologias independentes e alternativas, além de conservar matas e banhados como aliados no controle de insetos e doenças.
Na época, chamávamos nossos produtos de “ecológicos”, pois não havia literatura de produção orgânica no Brasil. O que nos moveu no pioneirismo de produzir orgânico foi o idealismo de independência; não aceitávamos a idéia de ter que comprar sementes, insumos e agrotóxicos e vender a produção para um intermediário.
Na busca de mercado, localizamos um grupo de consumidores idealistas em Porto Alegre que haviam fundado uma cooperativa, Coolméia, que comercializava diretamente para os consumidores do entreposto ou da feira da cooperativa. Como na época não havia certificadoras no Brasil, a Coolméia fazia um trabalho de acreditação da produção “ecológica”.
Mais tarde, criou um serviço de inspeção participativa, cujo técnico vistoriava periodicamente a Ecobio. Já um outro produtor orgânico realizava a vistoria de acreditação, ocasião que não era somente para fiscalização e rastreamento, mas de aprendizado mútuo.
A Lavoura – Quanto tempo levaram até conquistar a certificação?
Seguíamos um modelo que achávamos sustentável, com algumas informações daquilo que se faziam na Europa, principalmente na Alemanha. No final da década de 90, tínhamos a certificação participativa e de acreditação da Cooperativa Coolméia. Mais tarde, fomos certificados pela Ecocert, que nos permite atender o mercado brasileiro, norteamericano e europeu.
A Lavoura – Qual a extensão da área de produção da empresa? É necessário adquirir algum produto de terceiros?
Começamos com 24 hectares e atualmente temos mais de 300, entre áreas próprias e arrendadas. Adquirimos arroz irrigado de um parceiro, também pioneiro na produção orgânica no Brasil, para completar o produto Arroz 7 Grãos e a quinoa, que ainda não alcançou produção suficiente e de qualidade.
A Lavoura – Como se prepararam para a industrialização de seus produtos?
Apesar de produzir e comercializar nossos produtos na linha orgânica, com todos os insumos e sementes produzidas por nós, ainda não estávamos com o projeto completo: faltava agregar valor aos produtos. No final da década de 90 resolvemos começar a industrializar os produtos e optamos pelo produto nativo da região, a erva mate. Levamos o projeto técnico e de viabilidade econômica ao banco local, mas ele foi recusado na agência pelo histórico ruim da região. Contudo, durante uma exposição, encontramos o gerente geral de agronegócio do RS, José Kochhann, e apresentamos o nosso projeto. Não sabemos se ele ficou impressionado com o projeto ou com o nosso entusiasmo, mas aprovou o financiamento.
Após construirmos nosso prédio e comprarmos os equipamentos, vimos que não havia energia suficiente para ligar as máquinas! Apelamos à Secretária de Minas e Energia de Porto Alegre, que se sensibilizou com a situação e em dias a indústria começou a funcionar – sendo que a Secretária era nada menos que a atual presidente, Dilma Roussef.
A Lavoura – Como se dividem suas unidades de produção e qual é o volume de produção atual?
Atualmente temos três agroindústrias: a de erva mate, a produção de farinhas, gritz, granolas e fibras e o beneficiamento de cereais. Neste ano vamos inaugurar a indústria de óleos orgânicos. Quanto à produção, ultrapassamos as 1.500 toneladas anuais.
A Lavoura – Quais são os produtos atuais da Ecobio?
Temos arroz, canjica, erva-mate, farináceos (de linhaça, trigo, centeio, etc.), fibras, flocos, granola, grãos, linha Saúde (com nutracêuticos), dois tipos de macarrão, ração humana.
A Lavoura – Como está a receptividade da ração humana orgânica, um produto inovador, frente à convencional?
Muito boa.
A Lavoura – Como percebem as demandas dos consumidores em termos de sabores ou produtos?
Através das feiras que participamos, muitas com o apoio do projeto OrganicsNet. Além disso, temos utilizado a mídia eletrônica através de nossa loja virtual e das redes sociais (temos um blog e participamos do Facebook, Orkut e Twitter).
A Lavoura – Observou se o consumidor já tem mais acesso à informação sobre orgânicos?
Nas primeiras feiras (década de 80 e 90), passávamos boa parte do tempo explicando o que era produto orgânico e as vantagens do mesmo para o consumidor e a natureza. Atualmente, raras vezes precisamos explicar isso, o consumidor está bem informado nas cidades grandes. Entretanto, nas cidades pequenas e médias, ainda há muita desinformação.
Se o conceito de produto orgânico está relativamente assimilado pelo consumidor, está longe a consciência do que este alimento representa para a sua saúde e para o meio ambiente. Parece que é mais importante o debate sobre custos do que os malefícios atuais da agricultura convencional.
A Lavoura – Em sua opinião, quais os maiores desafios para os produtores rurais de sua região? Como organizam a logística de entrega?
Nosso maior problema é à distância da região consumidora e a falta de valorização do produtor rural orgânico. Recentemente participamos de uma feira internacional de orgânicos no Brasil e percebemos que a atividade está sendo dominada por empresas processadoras ou intermediárias. De um total de 300 expositores, somente 12 produziam a sua matéria-prima.
Além disso, a atividade está sendo invadida por empresas oportunistas, que não nunca tiveram consciência ou ética na produção, muito pelo contrário, criticavam os orgânicos e agora estão lançando produtos orgânicos somente com o interesse de aviltar ganhos econômicos.
A Lavoura – Quais os benefícios alcançados pela Ecobio ao atuar ao longo de toda a cadeia de produção, também evitando a figura do intermediário na venda ao consumidor?
As vantagens que destaco são essas: qualidade no produto colocado no mercado, já que dominamos todo o processo de produção; formação de parcerias fiéis e duradouras com as lojas e o consumidor final; preço estável do produto orgânico ao longo do ano e oferta regular, sem sazonalidade.
A Lavoura – Sendo produtores rurais, como sentem a carga dos impostos ao longo da cadeia?
Gastamos boa parte do tempo procurando atender às mudanças frequentes de legislação e de diferenças de alíquotas entre os Estados. É muito difícil trabalhar com essa burocracia e a carga tributária.
A Lavoura – O que gostaria de ver implementado neste novo governo?
Apoio ao produtor de matéria-prima propriamente dito. O modelo atual apoia irrestritamente as cooperativas – algumas têm a mesma diretoria há mais de 30 anos, dividindo prejuízos com os agricultores e o lucro com os diretores – e os assentados, esquecendo de quem não faz parte dessas categorias. O apoio pode vir de diferentes formas: financiamento diferenciado para a lavoura orgânica, com menor burocracia e juros; apoio à comercialização e busca de novos mercados e redução da carga tributária para o produtor que agrega valor ao seu produto agrícola, ou seja, aquele que industrializa.
A Lavoura – Fale um pouco sobre os projetos e perspectivas da empresa para 2011.
Todo início de ano fazemos o Planejamento Estratégico da Ecobio. Para 2011 estamos montando uma parceria com a maior reserva indígena do sul do Brasil (onde residem mais de 5 mil índios Caigangues e Guaranis) para preservar a área e começar a produzir orgânicos. Planejamos também o lançamento de oito novos produtos e a inauguração da indústria de óleos orgânicos extraídos a frio.