Saiba como criadores de escargots conseguiram sucesso na produção vencendo a resistência do consumidor brasileiro
Muita gente ainda torce o nariz quando se fala na iguaria típica da culinária francesa. Mas, o fato é que o mercado nacional tem se mostrado cada dia mais receptivo ao escargot, especialmente depois do intenso crescimento da classe média e da busca de hábitos de consumo um pouco mais requintados.
Porém, Carlos Funcia, engenheiro agrônomo e pioneiro no Brasil na criação de escargots — conhecida como helicicultura —, explica que o interesse não é exclusividade de apenas uma classe sócio-econômica.
“A cada dia, é menor a resistência das pessoas em relação ao consumo de escargots.
Os brasileiros estão se globalizando e se interessando pela culinária, em todas as camadas da população. Há um mercado interno muito receptivo a produtos de qualidade, e um novo pólo consumidor em forte crescimento, decorrente do turismo, que é o Norte e o Nordeste do país”, conta Funcia.
Começar pequeno
“Basta pensar simples para investir pouco”, ensina Carlos Funcia, que está à frente da “Helix Escargots” que, além de produzir, oferece cursos de capacitação para quem tem interesse em se tornar um helicicultor.
Segundo ele, o investimento inicial gira em torno de mil reais, levando em consideração a aquisição de matrizes selecionadas para reprodução e o material necessário para confecção dos criatórios. Atualmente, o quilo do escargot vivo é vendido a R$ 20 (ver quadro), já o quilo da carne crua selecionada (sem vísceras e conchas), obtido a partir de dois quilos de animais vivos, pode partir de R$ 90 e chegar a R$ 450. O preço da carne selecionada sofre essa grande variação devido ao processo de limpeza e seleção, específica de cada produtor.
“O investimento retorna a partir do quinto ou sexto mês do início da criação, com a venda da primeira produção”, explica Funcia. “Recomendo aos iniciantes usar sucata (madeiras e plástico) para montar as caixas de criação, que pode ser iniciada na própria casa ou na garagem, colocando as caixas em prateleiras”, aconselha.
Escargots Invernada: um caso de sucesso na helicicultura brasileira
Escargots Invernada, um caso de sucesso
Assim, pequeno, começou Alfredo Chaves, que partiu de uma produção artesanal de poucos quilos por mês, com escargots em cativeiro, para uma produção industrial de algumas toneladas ao ano, em parque aberto. “A questão de como começar pequeno, sobreviver e crescer se resolve somente de uma maneira: dedicação integral de tempo e energia ao negócio, além de explorar todas as oportunidades que a propriedade pode oferecer”, conta Chaves, diretor da “Escargots Invernada”.
A produção da Invernada, que começou em 1996, está localizada na Serra de Petrópolis, estado do Rio de Janeiro. Segundo Chaves, “a empresa abrange o ciclo completo de criação e comercialização do escargot, dando atenção à cada etapa, até a chegada da iguaria à mesa do consumidor”.
A produção de escargots de Alfredo Chaves teve início com a compra de 30 matrizes por semana, durante alguns meses, até chegar a 450. Este pode ser considerado um módulo básico. O objetivo inicial de Alfredo Chaves era tornar sua propriedade rural, até então de lazer familiar e deficitária enquanto propriedade produtiva, auto-sustentável.
No começo, fomentavam-se pequenas produções rurais inovadoras, “rentáveis,” de toda espécie: cogumelos, rãs, trutas, hidroponia e escargots. Chaves optou pela última opção e não se arrepende. Mas ele enfatiza que muitos começaram com ele e poucos ficaram. “Uma pequena produção, em geral, não resiste à necessidade de vender para obtenção de lucro e, assim, atingir o objetivo de sustento”, ensina.
Alfredo Chaves lembra que “apenas uma grande produção pode entrar em algum tipo de equilíbrio com o mercado, ainda mais se tratando de um produto como o escargot, que não faz parte do hábito alimentar do consumidor brasileiro”.
INVESTIMENTO INCIAL DA CRIAÇÃO | |
Investimento inicial (aproximado) | R$ 900 a R$1.200 |
Matrizes selecionadas | R$ 150/dúzia |
Produção mensal (a partir do 5º mês) | 25 a 28 kg |
Gasto com ração (para produzir 1kg de animal de vivo) | até R$ 1,60 |
Preço 1 kg de animais vivos (segundo o padrão de peso para abate) | até R$ 30 |
1 kg de carne selecionada (obtido a partir de 2kg de animais vivos) | R$ 90 até R$ 450 |
Escargots prontos para o consumo (embalagem com 12 unidades) | R$ 35 |
Animais fora de padrão (vendidos como isca para pesca) | R$ 0,50/unidade |
Fonte: Escargots Funcia e Escargots Invernada |
Velocidade diferente
A produção se desenvolveu bem, do ponto de vista técnico, mas com uma velocidade inteiramente diferente do tempo requerido para o conjunto de ações necessárias para se comercializar um produto. “O escargot tem características muito particulares dentro do mercado da alimentação no Brasil”, ensina o produtor.
Ao tentar unir as diversas vertentes deste quebra-cabeça, a microempresa veio a existir, com atenção dirigida a todos os aspectos de interesse do cliente. Escargots Invernada abrange o ciclo completo de criação e comercialização do escargot e muita atenção é dada a cada etapa até a chegada da iguaria à mesa do consumidor, para garantir sua qualidade no momento da degustação.
Mas, para que isto fosse possível, as estruturas de produção e de beneficiamento tiveram que ser totalmente reformuladas e modernizadas para produzir um alimento natural em escala industrial, saudável e economicamente rentável.
“De uma produção artesanal de alguns quilos por mês, com os escargots em cativeiro — em caixas ou tanques — passamos para uma produção industrial de algumas toneladas por ano, em parque aberto, onde o escargot raramente é manipulado diretamente, a não ser na hora da colheita. A produção em parque permite a racionalização da produção e melhora a qualidade do produto. Dificilmente, por exemplo, se vê uma concha mal-formada”, se orgulha o proprietário da Invernada.
Maior produtividade
As fases da produção foram regularizadas para atingir maior produtividade e racionalizar o trabalho: semeio, engorda, colheita e reprodução perfazem as etapas de um ciclo contínuo. Não há, como no método artesanal, matrizes em constante reprodução, ovos eclodindo a toda hora e filhotes a manipular semanalmente, bacias, caixas e caixotes de todo tamanho para higienizar diariamente, e milhares de potes de água e ração a distribuir em milhares de caixas.
Produção brasileira
Segundo Carlos Funcia, a variedade de climas no Brasil permite que a produção ocorra em todos os meses do ano, diferente da Europa, em que a produção só acontece em safras bem determinadas.
“A helicicultura brasileira já tem base técnica e mercado para crescer. Partindo de baixo investimento, o futuro criador pode ter uma nova fonte de renda e uma atividade alternativa que irá se ampliando, gradativamente, em função de seu interesse e disponibilidade de espaço/tempo. Os criadores profissionais fazem disso seu negócio próprio, que é o sonho da maioria dos brasileiros. Acredito que se mais criadores profissionais existissem, o mercado poderia ser mais amplo”, conclui Funcia.
O que é o escargot?
O escargot é um tipo de caracol, porém comestível. Molusco terrestre, tem hábitos noturnos e precisa de condições favoráveis para viver, como temperatura, umidade do ar. Durante o dia, procura abrigos úmidos e escuros. Existem milhares de espécies de caracóis no mundo, mas apenas três recebem a designação de escargot: Helix pomatia linné ou Gros Blanc, Helix aspersa ou Petit Gris, e Helix aspersa máxima ou Gros Gris.
O passo a passo da produção
Alfredo Chaves explica, detalhadamente, como é sua produção:
Reprodução
Depois de adquiridas as matrizes, elas são postas no “ateliê de reprodução”, onde ficam entre 30 e 45 dias. A área é clara, iluminada por 15 horas diariamente, e ventilada, com temperaturas entre 18° e 23° C, e umidade relativa do ar entre 80 e 95%. Todas essas condições servem para manter as matrizes em atividade.
Chaves chama a atenção para o cuidado na climatização: “Temperaturas muito abaixo, ou acima deste limite, levam o escargot a se “fechar” — hibernar — cessando sua atividade de reprodução ou desacelerando o crescimento em outros estágios. Esta técnica, no entanto, pode ser usada no momento da colheita para estocar o animal vivo para reprodução ou até mesmo para o abate”.
Gestação
Para a gestação, a matriz necessita de terra ou areia para postura dos ovos, que podem chegar a 120 por matriz. Esta etapa requer de 15 a 30 dias. Em seguida, os ovos são recolhidos e depositados em recipientes contendo composto ou terra esterilizados, que serão levados a um local próprio, também com temperatura e umidade controladas, para aguardar a eclosão.
Do berçário ao parque
Depois de eclodidos, os escargots recém nascidos, medindo apenas 3mm de diâmetro, irão diretamente para o parque, onde iniciarão a fase de crescimento, até a idade adulta, protegidos de predadores e de possíveis evasões.
Alfredo Chaves lembra que, “diferentemente do método artesanal, na criação em parques, raramente o escargot é manipulado diretamente, com exceção da colheita. Este sistema permite a racionalização da produção e melhora a qualidade do produto”.
Leiras para circulação facilitam o trabalho de distribuição da ração, bem como a manutenção dos aspersores e limpeza dos canteiros de produção.
Fase de engorda
No parque, os escargots recém nascidos são distribuídos em canteiros, na proporção de 350 animais por metro quadrado. Uma superpopulação pode causar problemas no fornecimento da alimentação, induzindo o escargot a abandonar a concha, causando sua morte, ou até mesmo a roer a própria concha ou a de outros animais em busca de cálcio.
O ideal é que plantas forrageiras da preferência dos escargots, como alfafa e canola, sejam plantadas no local, para contribuírem na alimentação natural do animal. Elas são fontes de uma parte da proteína e do cálcio, necessários para o desenvolvimento da criação. Além disso, ainda fornecem sombra que ajuda a manter a temperatura e umidade adequadas.
“Fora a alimentação natural, uma ração preparada é fornecida diariamente aos animais, garantido todos os nutrientes requeridos para o seu crescimento: proteínas e fibras, em forma de farelo de soja e trigo; cálcio, para formação de conchas sólidas; sais minerais e micronutrientes”, explica Chaves.
A colheita
A colheita é feita entre 3 a 5 meses após a eclosão dos ovos. Os jovens escargots, recém adultos, são colhidos antes de cruzarem. No momento da colheita, do total a abater, são selecionadas 20 mil matrizes, que serão levadas à hibernação durante 60 dias, período em que amadurecem sexualmente, para depois estarem prontos para o acasalamento, no ateliê de reprodução.
Segundo Chaves, “é muito importante que, no momento da colheita, sejam selecionadas as matrizes, para que se mantenha a qualidade dos escargots, entre elas, velocidade de crescimento, ganho de peso, textura da carne e conformação perfeita da concha”.
Sem sofrimento
Depois de colhidos e selecionados, os lotes de escargot que servirão de matrizes e dos que irão para o abate, todos são lavados, por dois dias, e posteriormente enviados para a hibernação em temperatura controlada, durante, pelo menos, 15 dias antes do abate. “Esta prática, além de limpar ainda mais a carne, assegura uma hibernação profunda no momento do abate, respeitando as normas de abate sem sofrimento animal”, conta Chaves.
O escargot é abatido em água fervendo, como se faz geralmente com os crustáceos. Um resfriamento rápido solta o escragot da concha, para que a carne seja retirada para limpeza e cozimento. A carne é lavada com sal grosso seguido de várias lavagens para eliminar o muco que existe em abundância nesse animal. Em seguida, passa por uma fervura de 20 minutos para esterilizar a carne e facilitar a retirada do restante dos órgãos internos.
Comercialização
Os escargots podem ser comercializados de várias formas e para diversos ramos, de restaurantes gourmet, a segmentos de decoração.
- Venda de escargots vivos para a indústria de conserva
- Venda de carne congelada
- Venda de pratos prontos
- Conchas para artesanato
- Conchas para ração animal
- Iscas vivas para pescaria
Curiosidades
- Os escargots são hermafroditas, isto é, são dotados de ambos os sexos e exercem as
funções masculina e feminina de reprodução.
- A cópula de um escargot dura, em média, de 12 a 18 horas.
- O homem consome caracóis desde a pré-história.
- Diversas conchas foram encontradas junto a utensílios culinários em sítios arqueológicos.
- Na Roma antiga, carne de escargot era receitada para curar bebedeira e indigestão.
- Durante a Idade Média na França, os escargots eram estocados nos conventos para serem consumidos nos períodos de escassez de alimentos.
- O escargot só foi consagrado na culinária francesa em 1814, quando o príncipe de Talleyrand ofereceu ao Czar da Rússia, Alexandre I, um prato de escargots.
- No Japão, clínicas de estética oferecem tratamento em que o cliente deixa que os escargots andem sobre seu rosto. Pesquisa revelou que a sua secreção possui propriedades rejuvenescedoras (veja o box).
- Aliás, a secreção é utilizada em produtos cosméticos na Europa e no Brasil, sendo indicado para o tratamento de feridas e cicatrizes.
Muito além da mesa
Do combate às rugas ao tratamento e prevenção da mastite bovina. Conheça alguns dos benefícios que o muco produzido pelo escargot pode oferecer.
Muito além dos pratos sofisticados, o escargot, ou melhor, o muco que ele libera — secreção glicoprotéica — possui uma série de propriedades terapêuticas.
Umas das referências na pesquisa sobre o tema no Brasil, a geneticista Maria de Fátima Martins, explica como o muco pode ser utilizado de diversas formas, seja na indústria farmacêutica, e também na produção de cosméticos.
Rico em alantoína
“O uso terapêutico do muco do escargot é muito amplo, devido às suas propriedades farmacológicas, se destacando o efeito cicatrizante do muco, que está sendo utilizado para estudos da formulação de pomadas”, conta a pesquisadora.
Ela explica que a secreção liberada em abundância pelo animal é rica em alantoína, que possui alta capacidade de regeneração de células da pele, podendo ser aplicada tanto na produção de medicamentos cicatrizantes, como em cosméticos que retardam o envelhecimento.
Maria de Fátima Martins explica que o muco ainda não é viável comercialmente. Mas acredita que, por ser um produto natural, os efeitos colaterais sejam mais brandos e os custos em relação aos cicatrizantes convencionais podem ser mais econômicos.
Uso comercial
No Brasil pode ser uma novidade, mas, em outros países, a utilização do muco já foi registrada pela indústria chilena, que comercializa shampoos e cremes, como a Elicina, à base de alantoína, colágeno, elastina e ácido glicólico, este, usado para tratar rugas, manchas na pele, estrias, cicatrizes e verrugas. O Japão também desenvolve aplicações medicinais com as substâncias retiradas do molusco. Um centro de estética japonês garante que “este é o novo segredo para a eterna juventude: deixar caracóis vivos rastejar pelo rosto, deixando aquela gosminha por onde passa”. “Na Europa, existe até um xarope indicado para bronquite e outras complicações pulmonares”, acrescenta a pesquisadora.
Dentre os caracóis pesquisados, o muco de Achatinafulica, mais conhecido como caramujo africano gigante, foi o que apresentou melhor resultado como reparador de lesões de pele, com a comprovação da sua ação antibacteriana, relacionada à presença da proteína mucina.
Como o muco é extraído
O escargot sintetiza o muco através de glândulas podais, característica de animais rastejantes. A principal função desse muco cutâneo é a proteção. Porém, a viscosidade pode auxiliar de outro modo, como locomoção, captura de alimentos, reprodução, e combate à desidratação, dando ao molusco uma alta capacidade de adaptação ao ambiente.
“A extração do muco pode ser realizada durante a vida adulta do animal, a partir dos 4 meses. É feita pela glândula podal através de estimulação manual das glândulas apócrinas, que se encontram na parte inferior do animal. Todo o manuseio é pensando a partir do respeito ao bem-estar do escargot”, informa.
A geneticista aponta que esse é um dos grandes desafios: conseguir o recolhimento eficiente da substância sem matar o animal. Segundo a pesquisadora, o tempo necessário para extração do muco depende da prática do profissional e também da espécie de escargot. “Nesta pesquisa, gastamos em média de dez a 15 minutos por molusco. É preciso melhorar a técnica ou estudar uma maneira de sintetizar o produto em laboratório”, afirma.
Prevenção e tratamento da mastite bovina
O muco do escargot também pode ser utilizado no controle de infecções intramamárias no gado leiteiro, como a mastite bovina. A constatação foi feita através de pesquisa realizada na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ ) da USP. O trabalho foi realizado no Departamento de Nutrição e Produção Animal (VN P), no campus de Pirassununga, pelo médico veterinário Eugênio Yokoya, também sob a orientação da geneticista Maria de Fátima Martins.
Técnica
Os pesquisadores aplicaram três tipos de tratamento nas vacas: lavagem dos tetos apenas com água, uso do iodo e aplicação do muco de escargots. O gado leiteiro do estudo era proveniente de propriedades rurais do interior de São Paulo das regiões de Leme, Porto Ferreira e Ribeirão Preto.
Após a extração, o muco foi liofilizado (transformado em pó) e reidratado com solução salina para facilitar a aplicação. Foram colhidas amostras da superfície dos tetos antes e depois da aplicação do muco. Os resultados indicaram que o muco de escargots apresentou um bom controle da microbiota, sendo eficaz tanto para reduzir como para prevenir a ocorrência de bactérias locais.
Redução de prejuízos
A iniciativa pode ajudar a reduzir as perdas econômicas causadas pela mastite, doença que mais causa prejuízos no setor leiteiro. Há redução de produtividade do animal e, devido ao tratamento medicamentoso, ocorre o descarte de leite. “Nas grandes propriedades, as perdas chegam a ser de 4.800 litros ao mês. Para o produtor, o prejuízo é de cerca de US$ 24 ao dia por vaca doente”, explica Martins.
O muco produzido por escargots, quando aplicado nos tetos de vacas leiteiras, antes e depois da ordenha, apresenta uma ação antimicrobiana superior a do iodo, substância comumente usada por produtores como antisséptico.
A grande vantagem do muco é sua proteção contra bactérias dos gêneros Micrococcussp Staphylococcussp, principalmente, e também seu efeito hidratador sobre a pele que reveste os tetos, por ser rico em alantoina. O iodo geralmente torna a pele áspera e causa, muitas vezes, feridas, que podem acarretar em danos a glândula mamária e causar o ressecamento das mãos dos ordenhadores.