A produção de cacau – principal matéria-prima para a produção do chocolate, o doce preferido de milhares de brasileiros – pode estar com os dias contados se não surgirem novas plantas mais resistentes a pragas e doenças. E a solução pode estar na biotecnologia
Complexo, sensível à temperatura e erosão, à contaminação do solo e, sobretudo, ao ataque de pragas. Quem gostaria de cultivar um fruto, assim, com tantas dificuldades? Pois muitos ainda se arriscam na empreitada de produzir cacau e garantir, principalmente, o bom e gostoso chocolate nas prateleiras, um dos doces mais consumidos no Brasil e no mundo.
Por aqui, essa guloseima “dos deuses” corre risco de virar artigo de luxo, em um futuro bem próximo, se novas ações em campo, especialmente em torno de novas tecnologias, e de políticas públicas de governo não forem tomadas em importantes áreas agrícolas da cacauicultura nacional, especialmente aquelas que perderam espaço no mercado interno, como o Estado da Bahia que cedeu lugar ao Pará.
É o que alerta, em entrevista à Revista A Lavoura, a doutora em Biologia Molecular Sulamita Franco, consultora do Centro de Informações sobre Biotecnologia (CIB), uma organização não governamental (ONG) e associação civil sem fins lucrativos.
Perda de espaço
Ela lembra que, até pouco tempo, o Brasil era o segundo maior produtor de cacau do planeta, mas por causa do surgimento da Vassoura-de-Bruxa (VB) no sul da Bahia, no final dos anos 80, principal região deste tipo de cultivo naquela época, a produção nacional passou a ocupar um indigesto sétimo lugar no ranking mundial, dentre os principais países produtores do fruto.
Segundo dados da Associação Nacional das Indústrias Processadoras de Cacau (AIPC), 73% do fruto produzido no planeta vêm na África, sendo 43% só na Costa do Marfim. O Brasil produz, nos dias atuais, apenas 4% do cacau consumido globalmente.
“Das 320 mil toneladas produzidas na década de 1980, sobraram apenas 190 mil, em 1991. Nos últimos anos, o setor se mostra em recuperação, mas o perfil brasileiro de produtividade mudou: o sul baiano, que por anos foi líder, sofreu um forte impacto devido ao período de estiagem prolongado”, comenta Sulamita.
O Estado do Pará, “por outro lado, combinando condições climáticas ideais e seleção de mudas de alta produtividade, alcançou a liderança nacional”, pondera a cientista.
Condições climáticas
O cultivo do cacau é altamente dependente das condições climáticas. “Por ser uma planta originária da região Amazônica, o cacaueiro (Theobroma cacao) está naturalmente adaptado a se desenvolver em regiões úmidas e condições específicas de solo”, informa a pesquisadora.
Como consequência do aquecimento global, é previsto que ainda haja mais alterações climáticas, a partir da diminuição da frequência de chuvas. “Com o clima mais seco, o cacaueiro não encontraria condições ideais de crescimento e produtividade.”
Sulamita explica que, por ser uma árvore nativa de ecossistemas tropicais, ela só cresce em climas com chuvas frequentes. Por causa de sua aptidão peculiar, o fruto é encontrado, especialmente, a dez graus acima ou abaixo da linha do Equador, onde fica o Estado do Pará.
Conforme a doutora em Biologia Molecular, o problema relacionado ao clima não atinge somente o Brasil: “Pesquisas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) apontam que a Costa do Marfim e Gana, por exemplo, responsáveis por boa parte do cacau produzido no planeta, perderão grandes áreas de cultivo”.
Um pouco de história
De acordo com relatos da Agência Fapesp (Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), o cacau chegou à Bahia em 1746, quando Luiz Frederico Warneau, um colonizador francês que vivia no Pará, enviou algumas sementes da variedade “Forastero” (do grupo Amelonado) ao fazendeiro baiano Antonio Dias Ribeiro, que as semeou no município de Canavieiras.
Seis anos mais tarde, foram cultivadas as primeiras sementes em Ilhéus, considerando que as plantas se adaptaram bem ao clima desta região. Ao longo do século 19, as propriedades rurais de cacau foram ganhando espaço, dando início às primeiras exportações, conforme foi aumentando o consumo de chocolate, principalmente, na Europa e nos Estados Unidos.
Nas primeiras décadas do século 20, o cacau era o principal produto de exportação da Bahia. Mas hoje a história é outra, por causa dos constantes ataques da Vassoura-de-Bruxa.
Sintomas da Vassoura-de-Bruxa
De acordo com a Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac), vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), os cacacuicultores podem identificar a Vassoura-de-Bruxa (VB) pelos seguintes sintomas:
- Nos lançamentos, a praga provoca inchação, superbrotamento e morte. As folhas, geralmente, são grandes e retorcidas;
- Nas almofadas florais ocorre um agrupamento de flores grandes e compridas. Também podem desenvolver vassouras vegetais, cujos ramos emitem flores;
- Nos frutos novos, a VB produz sintomas diversos como frutos “morango” e “cenoura”;
- Os frutos menores ficam inchados e deformados, com amadurecimento precoce;
- Os frutos maiores apresentam mancha dura;
- Por fim, nas partes doentes e apodrecidas, aparecem os basidiocarpos ou cogumelos.
Recomendações
Em caso de suspeita de ataques da Vassoura-de-Bruxa, os agricultores devem procurar a Ceplac da sua região para receberem treinamento, assim como seus administradores, cabos de turma e operários rurais, sendo estes trabalhadores importantes na identificação da doença nas fazendas.
Os produtores também precisam vistoriar frequentemente as lavouras, quando estiverem realizando as práticas de colheita, limpeza de galhos, desbrota etc. E qualquer suspeita de roças afetadas pela VB, o cacauicultor deve comunicar imediatamente à Ceplac local.
Finalmente, quando visitar áreas infectadas pela praga, o agricultor não deve transportar partes de plantas doentes como ramos, folhas ou frutos, pois podem espalhar a doença em outras propriedades rurais.
Estados produtores
Os principais Estados brasileiros produtores de cacau, além do Pará e Bahia, são o Amazonas, Rondônia e Espírito Santo. Os dois primeiros continuam se destacando pela alta adaptabilidade da planta ao clima e ao solo daquelas regiões. Devido às condições climáticas, a planta se adapta bem à faixa de 20 graus ao norte e 20 graus ao sul da linha do Equador.
“A Bahia foi líder nacional de produtividade das amêndoas por muito tempo. Porém, nos últimos anos, a seca que acometeu a região, somada à crise financeira, fez com que o Estado perdesse a liderança para o Pará que, além de possuir clima favorável, investiu em mudas de alta produtividade”, comenta a doutora em Biologia Molecular Sulamita Franco.
Cenário baiano
Por causa dos “ataques ferozes” da Vassoura-de-Bruxa, especialista relata que o Estado da Bahia amargou anos e anos de perdas, “cedendo” a liderança da cacauicultura nacional – ainda que seja vista como temporária – para o Pará.
“Atualmente, o cultivo paraense protagoniza a produção do fruto no País, com mais de 900 quilos por hectare (dados de 2017),um desempenho maior que a média mundial, que é de 550 quilos por hectare”, informa a pesquisadora.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Pará é atualmente responsável por 54% de toda a produção de cacau em território nacional, com destaque para os municípios do Sudeste do Estado, onde cidades como Tucumã e São Félix do Xingu apresentam solos férteis, condições naturais favoráveis e, especialmente, a organização dos agricultores em cooperativas, com destaque para a agricultura familiar e pequenos produtores rurais.
Safra do Pará: atual líder no Brasil
Um relatório da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac), referente à produção agrícola de 2017, mostra que a safra no Pará foi de 132.720 hectares com produção superior a 120 mil toneladas de amêndoas secas. Se forem levados em conta os dados do IBGE, conforme Sulamita, o Estado chega ao total de 125.104 toneladas na safra do ano passado.
No Pará, o cultivo do cacau – fruto endêmico e nativo da região amazônica – ganhou forte destaque na última década. Nos dias atuais, a história do cacau naquela região é contada por pequenos e médios produtores da Transamazônica.
Lição que vem do Norte
O crescimento da cacauicultura paraense na Região Norte do País, de 2011 para cá, é a prova de que os resultados positivos são visíveis quando se unem novas tecnologias em campo e políticas públicas de governo. O salto da produção local, por exemplo, se deve especialmente à criação do Programa de Desenvolvimento da Lavoura Cacaueira no Estado, que faz parte da Secretaria de Desenvolvimento Agropecuário e da Pesca do Pará (Sedap).
Há seis anos, a partir do “Planejamento Estratégico 2012-2022”, a Ceplac/PA estabeleceu diretrizes na forma de “Objetivos Estratégicos, Iniciativas e Operacionalização de Ações”, que têm como meta final, para o Estado do Pará, uma produção por volta de 230 mil toneladas e uma área produtiva de 183 mil hectares.
“Neste contexto, e levando em conta a definição do Pará, ao considerar a atividade cacaueira como importante para o desenvolvimento agrícola do Estado, foi oficializado o compromisso, criando o Programa de Desenvolvimento da Lavoura Cacaueira e usando, em suas estatísticas, os números revelados pela Ceplac/Supam, em um sistema de parceria e sintonia nestas ações”, relata Mendes.
Demanda maior que a produção
Mesmo diante de boas notícias, vindas especialmente do Pará, a doutora em Biologia Molecular Sulamita Franco alerta, ainda assim, para o fato de que a produtividade de cacau continua muito aquém do consumo.
“A produção nacional do fruto não é suficiente para atender à demanda do País, mas há a expectativa de que a entrega da matéria-prima local à indústria aumente 10%, em 2018, com estimativa de um crescimento do faturamento com cacau em 8%, para o mesmo período, segundo prevê o Ministério da Agricultura”, conta a cientista.
No que depender de declarações oficiais do governo do Estado do Pará e órgãos federais parceiros da região, “serão incansáveis” os esforços contra uma (hipotética) extinção do cacau, considerando que estão previstos novos investimentos na cacauicultura local, tanto da parte do poder público quanto da iniciativa privada.
Falar em extinção é exagero?
Na visão da doutora em Biologia Molecular Sulamita Franco, apesar da cena mais favorável hoje em dia, após “o auge da crise da Vassoura-de-Bruxa”, há de se considerar a perspectiva de mudanças climáticas, com a previsão de menos chuvas para os próximos anos. Por isso, em sua opinião, não é exagero afirmar que “as áreas de cultivo de cacau no Brasil tendem a se tornar cada vez mais escassas podendo, inclusive, ser extintas”.
Ela pondera, no entanto, que “a extinção do cacaueiro é uma previsão em longo prazo, em um cenário em que o mundo parasse de se preocupar com o fenômeno do aquecimento global, imaginando o pior cenário possível e, mesmo assim, isso ocorreria lentamente”.
“Diversos órgãos não abordam a temática por conta do fato de que muitos países, inclusive o Brasil, têm se comprometido com medidas para a diminuição das emissões de gás carbônico, o que deve colaborar para a desaceleração do fenômeno”, comenta Sulamita.
Para a pesquisadora, os órgãos brasileiros têm se dedicado a mecanismos que visam ao aumento da produtividade atual, explorando melhor o potencial produtivo do cacau no País.
“A ciência está se antecipando ao problema, alinhada às necessidades de agricultores e da sociedade em geral. A criação de uma planta tolerante a regiões mais secas, por exemplo, ajudaria a estender a produção do fruto para outras localidades, que não têm o privilégio de chuvas frequentes.”
Mais consumo e menos retorno financeiro
Na opinião do chefe do Centro de Pesquisa e Extensão da Ceplac no Pará, o auditor fiscal federal agropecuário Fernando Mendes, “há certo exagero na possibilidade de extinção do cacau”.
“O problema pode estar na necessidade sentida pelas principais moageiras internacionais, dado o crescimento mundial do consumo de chocolate e a entrada de países emergentes e populosos como consumidores. O dilema está na percepção dos produtores por serem mal remunerados pelo produto”, comenta o executivo.
De acordo com ele, “os números mundiais da cadeia de valor do cacau, apresentados na 3ª Conferência Mundial do Cacau, realizada em Berlim (no mês de abril deste ano, na Alemanha), informam que o cacauicultor recebe menos de 10% daquilo que é gerado em termos financeiros”.
Prevenção pode vir da biotecnologia
Embora alguns especialistas considerem exagerado dizer que há o risco de extinção do cacau no Brasil e no mundo, a doutora em Biologia Molecular Sulamita Franco ressalta que outros já estão buscando, até como forma de prevenção, novas soluções na biotecnologia.
De acordo com a cientista, pesquisadores daqui e lá fora vêm estudando “os genes do próprio fruto, que são responsáveis pela resistência a pragas; ou a introdução de genes de outras espécies, como alguns da mandioca, que respondem pela inibição da produção de toxinas em altas temperaturas, minimizando os impactos”.
No Brasil, conforme a pesquisadora, o principal foco tem sido desenvolver plantas que não sejam sensíveis à Vassoura-de-Bruxa, principalmente porque os produtos oriundos do cacau geram, em receita, algo em torno de R$ 14 bilhões ao ano.
“A biotecnologia vem sendo aplicada desde 2001 na cultura do cacau do País. A primeira grande iniciativa, nesse sentido, foi o ‘Projeto Genoma da Vassoura-de-Bruxa’, conduzido graças a um consórcio formado entre instituições que detêm a maior competência no Brasil, na área da engenharia genética ou da biotecnologia, como a Unicamp, Ceplac, Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e Uesc (Universidade Estadual de Santa Catarina)”, informa Sulamita.
Ação e propagação do fungo nas lavouras
A bióloga também informa que o projeto contou com o financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq/PADCT) e governo do Estado da Bahia.
“A pesquisa gerou dados para vários estudos subsequentes, sobre o modo de ação e propagação do fungo nas lavouras. Este conhecimento acumulado já foi absorvido em técnicas de manejo, que ajudam driblar a doença. Além disso, hoje existem várias pesquisas que englobam o cacau e suas doenças, que estão sendo conduzidas no Brasil e em instituições internacionais, cuja principal ferramenta de estudo é a biotecnologia,”.
A ideia, conforme Sulamita,“é testar genes que possam estar envolvidos na resistência da planta à seca ou ao ataque de doenças em plantas geneticamente modificadas”.
Solução estaria na transgenia?
Para a doutora em Biologia Molecular, uma das soluções biotecnológicas pode estar na transgenia: “Existem várias pesquisas sendo conduzidas, neste sentido, por grupos de pesquisa nacionais, internacionais e em parcerias. Por meio do estudo de genes da própria planta ou a introdução de genes de outras espécies, como da mandioca, seria possível desenvolver novas variedades da planta resistentes a pragas, mudanças de temperatura ou ainda capazes de sobreviver em ambientes mais secos”.
“Há um grande desafio tecnológico na produção de plantas perenes transgênicas. Devido ao ciclo de vida longo, os testes de viabilidade dessas nossas plantas de cacau podem durar muito mais do que, por exemplo, os testes em cultura de ciclo de vida curto, como o milho. Apesar disso, alguns centros de pesquisas já exibem resultados promissores nesta área”, diz Sulamita.
Plano de crescimento em 10 anos
Durante uma reunião realizada em agosto do ano passado, entre representantes da Associação Nacional das Indústrias Processadoras de Cacau (AIPC) e o então ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Blairo Maggi, foi apresentado um plano de crescimento da cacauicultura no Brasil para a próxima década.
Por meio do documento, foi indicado um aumento na produção do fruto no País que, atualmente, gira em torno de 180 mil toneladas por ano. A intenção é chegar aos mesmos patamares do que era produzido no final da década de 1980, pelo Estado da Bahia.
Na ocasião, os representantes da AIPC pediram apoio para a ampliação da assistência técnica e investimentos para pequenos e médios produtores da região amazônica e de parte do Mato Grosso, voltados para o aumento da produção.
“Por ser uma planta nativa do bioma amazônico, não há problemas de desmatamento. Além do mais, existe uma experiência de sucesso na Bahia, de integração do cacau com a floresta”, comentou Juvenal Cunha, diretor da Ceplac, em reportagem publicada no dia 21 de agosto de 2018, pela assessoria de comunicação do Mapa.
Segundo dados da AIPC, 73% do cacau produzido no mundo se encontram na África, sendo 43% só na Costa do Marfim. O Brasil produz, atualmente, apenas 4% do cacau consumido no mundo, figurando na sétima posição.
A AIPC estima que, com assistência técnica correta e financiamento garantido, haverá crescimento muito grande do setor, garantindo renda média de 1.200 dólares por hectare. Isso porque, conforme a instituição, o consumo anual do chocolate no mundo vem crescendo 1,7% ao ano.