A preservação desses materiais evita a perda da diversidade genética e cultural existente na agrobiodiversidade catarinense
O agricultor de Joinville, SC, Noberto Rudnick, 77 anos, tem na memória um sabor especial da infância: a sopa de frango com mangarito que a mãe fazia. Por muitos anos, esse tubérculo sumiu da alimentação da família, porque a variedade não era comercializada, mas apenas cultivada por grupos familiares para consumo próprio.
Porém, em 1992 ele conseguiu uma muda de mangarito com um conhecido e passou a cultivar a espécie no quintal de casa, sempre selecionando mudas para o próximo ano e passando o conhecimento para as gerações seguintes. Hoje sua neta Sara está envolvida no cultivo e desde o ano passado ela organiza a comercialização de mangarito na feira rural e em outros pontos de venda do município.
Variedades crioulas são populações conservadas obtidas através de seleção e cruzamento natural realizados pelos agricultores ao longo de muitas gerações. Isso é feito armazenando as melhores sementes da lavoura para o ano seguinte, selecionados apenas os tipos com determinadas características desejáveis, gerando um melhoramento natural.
Adaptação
A extensionista rural Juliane Justen, que coordena na Epagri o programa estadual Desenvolvimento e Sustentabilidade Ambiental, explica que as variedades crioulas são populações conservadas, diferentes em sua composição genética e adaptadas às condições agroclimáticas e ecológicas particulares às áreas de cultivo. Isso ocorre porque a prática de selecionar sementes para o próximo plantio cria variedades naturalmente mais adaptadas onde estão sendo manejadas.
O termo “crioulas” remonta à época em que havia pouca ou nenhuma pesquisa de melhoramento genético de plantas. Segundo Juliane, mesmo sendo geralmente menos produtivas que as cultivares comerciais, essas sementes representam a independência das famílias agricultoras, pois são produzidas com menor aporte de insumos, como fertilizantes químicos e agrotóxicos, tornando-se mais rentáveis.
Existem variedades crioulas de todas as espécies cultivadas. Só de batata são cerca de cinco mil variedades. O Banco de Germoplasma da Embrapa supera quatro mil amostras de milho. O mangarito (Xanthossoma maffaffa), originário do Brasil Central, bastante utilizada no passado, hoje está quase extinto. Segundo o Manual de Hortaliças Não Convencionais do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), ele pertence à família do inhame..
Diversidade genética
No caso dos cultivos agrícolas, a diminuição da diversidade genética representa um risco para a segurança alimentar no futuro, já que a tendência é de crescimento da população humana. “A conservação das sementes crioulas evita a perda da diversidade genética e cultural existente na agrobiodiversidade, ao contrário do que acontece nos monocultivos, por exemplo”, destaca Juliane.
A extensionista explica que os monocultivos, além de estreitar a base alimentar humana e provocar a perda de conhecimentos importantes associados aos alimentos, também contribuem para o aumento da vulnerabilidade das plantas a pragas e doenças, interferem na qualidade do ambiente e dos alimentos e geram um alto risco para estabilidade dos agroecossistemas.
A Epagri atua no meio rural de forma educativa para que os agricultores valorizem, resgatem, multipliquem e façam a troca das sementes crioulas. Em todo o Estado, os extensionistas visitam famílias e realizam reuniões e encontros para estimular a troca de experiências, sementes e plantas, levando materiais para áreas isoladas, como no caso de aldeias indígenas.
Com mais famílias cultivando essas sementes, a variedade e a qualidade nutricional da alimentação melhoram. Isso também gera economia nas propriedades. Pesquisa realizada pela Epagri no Oeste Catarinense estima que cada família economize cerca de R$1.380 por mês consumindo o que produz. E é exatamente nessa região que está o município reconhecido como capital nacional do milho crioulo, que hoje busca a Indicação Geográfica para o grão lá produzido.
IG de milho crioulo
O município de Anchieta, no Oeste Catarinense, detém os títulos de Capital Nacional da Produção de Sementes Crioulas, instituído pela Lei Federal nº 13.562/2017, e de Capital Estadual do Milho Crioulo, concedido através da Lei Estadual nº 11.455/2000. O objetivo agora é conquistar o selo de Indicação Geográfica (IG).
Com apoio da Associação dos Pequenos Agricultores de Milho Crioulo Orgânico e Derivados e da Cooperativa da Agricultura (Cooper Anchieta), diversas atividades preservam as variedades desde a década de 1990. Desde então, sementes foram resgatadas, melhoradas, partilhadas e introduzidas nos sistemas locais de produção. Só de milho, foram mais de duas dezenas de variedades crioulas.
A produção de milho crioulo ocupa diversas propriedades locais, além dos municípios de Guaraciaba e Palma Sola. Hoje Anchieta é reconhecido por ser um dos que mais contribui com o milho crioulo no país. O local, que recebe a Festa Nacional das Sementes Crioulas desde 2020, está buscando a Indicação Geográfica na categoria Denominação de Origem (DO), conferido pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI).
Legislação
O Brasil conta com legislação que reconhece a existência da semente crioula. Segundo a Lei 10.711/03, conhecida como Lei de Sementes, os agricultores familiares, assentados da reforma agrária e indígenas não precisam ser registrados no Registro Nacional de Sementes e Mudas (Renasem), do Mapa para produzir, trocar ou vender sementes ou mudas entre si e também estabelece que as variedades crioulas não precisam da inscrição no Registro Nacional de Cultivares (RNC).
A referida lei proíbe o estabelecimento de restrições à inclusão de sementes e mudas de cultivar crioula em programas de financiamento ou em programas públicos de distribuição ou troca de sementes.
Onde encontrar
As sementes crioulas podem ser encontradas em bancos de sementes individuais, coletivos ou institucionais, ou seja, espaços físicos de armazenamento de sementes, que visam preservar as sementes de forma adequada. Em Santa Catarina, estão presentes em feiras regionais ou eventos locais de troca de sementes, geralmente organizados por movimentos sociais, ONGs, cooperativas da agricultura familiar, sindicatos de trabalhadores rurais, ou ainda em locais virtuais, em sites de doação, troca, compra e venda de sementes.