Pesquisa da ESALQ indica melhor uso de lodo de curtume no solo
O Brasil é um dos maiores exportadores de couro do mundo, processando cerca de 42 milhões de peles por ano. Ocorre que para a obtenção de um produto que atinja alto padrão de qualidade no mercado, o tratamento desse material é realizado com significativa demanda de produtos químicos como cloreto de sódio, hidróxido de amônio, bactericidas, enzimas proteolíticas, cal hidratada, sulfeto de sódio, sulfato de amônio, ácido sulfúrico, ácido fórmico e sais de cromo, dando origem ao couro denominado de “wet blue”. Até a década de 1980, a maioria dos curtumes brasileiros gerava, como resíduo desse tratamento, dois tipos de lodos, o de caleiro e o lodo primário. “Os curtumes são conhecidos como vilões do meio ambiente; essa idéia vem ainda do tempo em que não havia nenhum tratamento dos resíduos, sendo que estes eram totalmente despejados em rios”, comenta o agrônomo Alexandre Martin Martines, autor da tese “Avaliação ambiental e agronômica do uso de lodo de curtume no solo”, desenvolvida no programa de pós-graduação em Solos e Nutrição de Plantas da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (USP/ESALQ).
Orientado pela professora Dra. Elke Jurandy Bran Nogueira Cardoso, do departamento de Ciência do Solo (LSO), o autor da pesquisa conta que seu interesse pelo assunto teve início ainda na graduação, na Universidade Estadual de Londrina (UEL). “Na cidade em que eu nasci, em Rolândia (PR), há um curtume que aplica parte de seus resíduos numa área agrícola próxima a suas instalações. Eu passava por lá durante a graduação e sempre tinha curiosidade em saber quais os impactos positivos e negativos para o solo daquele manejo. Então, naquela época, conversando com o Dr. Mário Miyazawa, pesquisador da área de solos do Instituto Agronômico do Paraná (IAPAR), acabei conhecendo um pouco mais sobre o tema, inteirando-me sobre metais pesados, enfim, fui pesquisar sobre a questão. Quando ingressei no mestrado, aqui na ESALQ, resolvi aprofundar meus conhecimentos nessa área”.
No mestrado, iniciado em 2002, trabalhou com dois tipos de materiais que eram aplicados em solo agrícola por aquela indústria. “Nossa proposta foi trabalhar com dois resíduos do curtume: o lodo primário, um resíduo rico em nitrogênio e com baixo teor de cromo em decorrência da separação dos efluentes que contêm Cr, manejo esse que não era adotado pelos curtumes antigamente, e que viabilizou sua aplicação em conjunto com o lodo de caleiro, que é um material com grande quantidade de cal, não tem cromo e apresenta um pH elevado. A mistura desses dois lodos, quando aplicada ao solo, funciona como corretivo e fertilizante além de ser uma alternativa para disposição e reciclagem desses resíduos”.
Do laboratório ao campo
Durante o mestrado, o pesquisador realizou estudos em laboratório e casa de vegetação, e no doutorado, Martines transferiu suas ações para o campo. Assim, um experimento foi instalado em Rolândia com objetivos de avaliar a perda de nitrogênio por volatilização da amônia, as alterações microbiológicas do solo, a lixiviação de nitrogênio mineral, a produtividade da cultura do milho e o efeito residual, após a aplicação de doses crescentes do lodo de curtume no solo. Tendo como parâmetro a norma P4 233 da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB), que apresenta critérios para uso de lodos de curtumes em áreas agrícolas. “O material permaneceu no campo durante dois anos, em um experimento de longa duração, financiado pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e pela Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), e ali pudemos observar a viabilidade de aplicação e testar as conseqüências de doses crescentes para as características do solo”, comenta o pesquisador.
O foco anterior das pesquisas envolvendo curtumes era a avaliação do efeito do cromo no solo. Os estudos com lodo de curtume tiveram seu início no Rio Grande do Sul, região onde temos uma maior concentração dessa atividade. “Quando se verificou a presença do cromo, um metal pesado que pode apresentar problemas ambientais significativos, os órgãos fiscalizadores intensificaram as tentativas de minimizar o descarte no ambiente. Então os curtumes modificaram seu projeto e hoje boa parte dessas empresas já consegue separar o material com alto teor de cromo, liberando lodos sem ou com pouco cromo”, conta Martines.
Viabilidade em solo agrícola
Na prática, o agrônomo misturou esses dois materiais, o que viabilizou o seu emprego em solo agrícola. Esses dois resíduos são produzidos em grande quantidade, sendo que, em média, somente 5% do volume total são sólidos e a porção líquida que sobra é água. Em geral, O manejo se dá pela aplicação direta em uma determinada área, durante cerca de quatro meses e, após esse período, o solo está apto para receber uma cultura agrícola. No entanto, Martines ressalva a necessidade de se definir principalmente o teor de nitrogênio e sódio nas doses aplicadas no solo. “Podemos perceber que essa é uma alternativa viável, traz benefícios para a agricultura, mas tem alguns pontos que precisam ser considerados com cuidado. A redução do teor de Cr, que é tóxico para os seres vivos, no lodo primário possibilitou sua utilização em conjunto com o lodo do caleiro em área agrícola, não sendo mais este o fator limitante na determinação da dose a ser aplicada. Contudo, altos teores de nitrogênio no solo, na forma de nitrato, decorrentes da mineralização da fração orgânica do lodo de curtume, podem proporcionar impactos negativos, principalmente quando a mineralização não é sincronizada com a absorção pelas plantas, possibilitando sua movimentação e consequente contaminação das águas superficiais e subterrâneas. Já o sódio pode causar limitações no desenvolvimento das plantas, dispersão de argilas e até dispersão da matéria orgânica.
Técnicas específicas de manejo
Assim, as características físico-químicas desse resíduo exigem técnicas específicas de manejo, como incorporá-lo ao solo, evitando que ele fique na superfície, o que facilita perda de nitrogênio por volatilização. Além disso, a pesquisa indica que se deva aplicar o resíduo em um período mais próximo do plantio, possibilitando um melhor aproveitamento pelas plantas e diminuindo o risco de contaminação do lençol freático por lixiviação. Com a aplicação correta, em doses adequadas, o agricultor obtém grande economia, visto que esse manejo permite abolir os corretivos e fertilizantes nitrogenados. Para o curtume, diminuem os custos de tratamento e disposição de uma imensa quantidade desse lodo, amenizando assim o impacto ambiental. Além disso, a incorporação da dose de 521 kg ha-1 de nitrogênio na forma de lodo proporcionou ganho de produtividade de grãos em 11% em comparação ao tratamento convencional”, explica o agrônomo.
“O resultado da pesquisa traz novas informações sobre o manejo adequado do lodo de curtume resultando em aumento de produtividade agrícola sem causar danos ambientais. Essas informações serão apresentadas à CETESB, que pretende revisar a norma de aplicação que vigora desde 1999. “Assim como ocorreu no caso do lodo de esgoto, pretendemos que a norma da CETESB seja a base para uma norma federal para o uso de lodo de curtume, uma vez que apenas os estados de São Paulo e Rio Grande do Sul contam com normatização para uso de resíduos nesse segmento, sendo que hoje temos curtumes espalhados por todo o país”, conclui Alexandre Martin Martines.