Os pequenos produtores são a espécie mais ameaçada de extinção na Amazônia. São como pecadores, abandonados pelo poder público, vítimas das iniciativas de “desantropização” de certos ambientalistas, tratados em campanhas de parte do agronegócio como grileiros, enquanto o Código Florestal favorece a grande empresa rural na Amazônia, em detrimento da agricultura familiar. Mais de cinco milhões de pessoas, há décadas, produzem e preservam em meio às florestas equatoriais, enfrentam todos os desafios da bioadversidade amazônica e se perguntam: Unde veniet auxilium meum? (De onde virá o meu socorro?)
Quantos produtores rurais vivem hoje no bioma Amazônia?
Produtores rurais não são o equivalente a imóveis rurais, nem a estabelecimentos agropecuários. O mundo rural amazônico é antigo e complexo. Ele compreende atividades sem base na terra (apicultores, pescadores); diversos tipos de extrativismos vegetais e animais; pessoas, etnias, comunidades e unidades dedicadas à produção vegetal e animal.
A diversidade de tecnologias usadas na agropecuária vão desde práticas próximas do Neolítico até as de vanguarda para a produção de grãos e algodão.
Uma análise geocodificada inédita dos dados de 534.261 imóveis rurais do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e das coordenadas geográficas de cada um dos 677.596 estabelecimentos agropecuários, levantados pelo Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2017, permitiu aos pesquisadores da Embrapa Territorial uma nova aproximação para essa complexa pergunta.
Um imóvel rural do CAR pode conter vários estabelecimentos agropecuários, segundo os critérios do IBGE. Por outro lado, um grande estabelecimento agropecuário pode abranger diversos imóveis rurais (CCIRs). Existe cerca de um milhão de produtores e unidades de produção nas áreas rurais do bioma Amazônia. Conjunções e disjunções desse universo seguem pesquisadas.
Quanto do bioma Amazônia está ocupado pela vegetação nativa?
Hoje, 84,1% do bioma Amazônia está recoberto por vegetação nativa (353.156.844 hectares), incluindo vegetações florestais, formações não florestais e mistas.
As grandes superfícies hídricas (8.818.423 hectares) representam 2,1% desse mesmo bioma. Os ambientes predominantemente naturais, vegetação nativa e grandes superfícies hídricas somam 86,2% do bioma Amazônia.
Quanto do bioma Amazônia está ocupado pela agropecuária?
Algo em torno de 12,8%. Pastagens nativas, plantadas e manejadas alcançam 10,5% do bioma Amazônia (44.092.115 hectares). Lavouras anuais, semiperenes e perenes somam 2,3% (9.658.273 hectares). As infraestruturas viárias, urbanas, energético-mineradores e outras são estimadas em 1% do bioma.
Um resumo gráfico dos resultados numéricos das áreas de vegetação nativa, das áreas exploradas (pastagens, lavouras, infraestruturas e outras) e com grandes superfícies hídricas no bioma Amazônia é apresentado na Figura 1.
Qual a relevância da agricultura no bioma Amazônia?
A produção vegetal é irrelevante para as exportações e ao Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil. Somam apenas 0,5% da produção nacional de cana-de-açúcar, menos de 2% do algodão e da laranja, e 4% do café produzidos no País estão nesse bioma. Milho e soja representam 7,6% e 9,8% da produção nacional.
Não há necessidade, nem razão, para ampliar essas áreas, mas sua produção vegetal é fundamental para abastecer a população de 500 cidades amazônicas com frutas, leite e derivados, ovos, grãos, hortaliças e outros produtos. Quando trazidos de outras regiões do Brasil, seu custo é altíssimo.
Apenas a produção de carne bovina na região é relevante ao abastecimento nacional e às exportações (29% do rebanho brasileiro). A produção de suínos e aves – 5% e 3%, respectivamente, do plantel nacional – visa essencialmente ao abastecimento do mercado local e regional.
Quantos produtores rurais desmatam no bioma Amazônia?
Atualmente são bem poucos. Mais de 97% dos produtores e unidades de produção não estão envolvidos com esse processo. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em 2018, ocorreram, nas áreas rurais do bioma, aproximadamente 29 mil registros de desmatamentos, de tamanhos variáveis. Eles contribuíram para o total de 7.094 quilômetros quadrados desmatados. Mesmo em uma hipótese maximalista, em que cada desmatamento fosse realizado por um produtor ou unidade de produção diferente, esse dado envolveria somente algo em torno de 3% dos agricultores, pecuaristas, extrativistas em diversas unidades de produção. E isso não significa que estariam cometendo uma ilegalidade, já que o Código Florestal brasileiro autoriza o uso, para atividades agrícolas, de até 20% da área dos imóveis rurais. E muitos agricultores sequer atingiram esse valor.
Quantos agricultores praticam queimadas no bioma Amazônia?
Mais de 80%. Os povoadores europeus aprenderam essa técnica na era neolítica com os indígenas. Nada houve de excepcional na Amazônia, em 2019. Os agricultores usaram o fogo para renovar pastagens, combater carrapatos, eliminar restos culturais, abrir capoeiras, fertilizar solos com as cinzas etc.
Tecnologias para substituir o uso do fogo custam caro: mecanização, adubos químicos, pesticidas, entre outras práticas. Onde são adotadas, o uso do fogo regride. Alguém no planeta se propõe a financiar o acesso a essas alternativas para os pequenos produtores rurais amazônicos?
Os desmatamentos são legítimos ou ilegais?
O tema é complexo e as regras legais do desmatamento mudaram diversas vezes na região. Segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em cerca de 50 anos, governos sucessivos estabeleceram 2.405 assentamentos agrários no bioma Amazônia e ali se instalaram aproximadamente 521 mil famílias. A maioria segue sem título de propriedade de seu pequeno lote.
Como obter financiamento sem regularização fundiária? Como solicitar autorização de desmatar para plantar mandioca? Mesmo quem consegue solicitar, respeitando as exigências do Código Florestal, dificilmente a recebe.
Muitos produtores foram multados e perderam acesso ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Estão no fundo do poço. E no mundo urbano há quem exija que eles saiam desse buraco sozinhos e de forma “sustentável”.
Os pequenos são criminosos ou informais?
Nas cidades, os pequenos agricultores fariam parte da economia informal, como salões de beleza, quituteiras, entregadores etc. Há décadas, políticas públicas buscam reduzir a informalidade de prestadores de serviço, facilitando os impostos, a criação de microempresas etc. No campo, alguns – face aos recentes tumultos amazônicos – os tratam de ilegais, os equiparam a grileiros e defendem – talvez, por ignorância – que o rigor da lei deveria incidir sobre eles.
Assistência ou cadeia?
Os agricultores familiares da Amazônia não são empresários ou investidores rurais, modelos de sustentabilidade pelo capital e marketing (greenwash). Os pequenos precisam de assistência técnica, extensão rural, associações e cooperativas, acesso à informação, novas tecnologias e circuitos de comercialização. Devem ser apoiados – e não criminalizados – por um discurso simplista.
Hoje, os pequenos agricultores na Amazônia não têm direitos, nem lugar. Órfãos de pai e mãe, não há quem os defenda. Nem na terra, ou nos céus. Padecem de uma invisibilidade social.
Enquanto o leitor percorre este artigo, famílias rurais cuidam de plantações, bezerros, armazenagem do feijão e reparos de cercas, do Acre ao Amapá, de Roraima a Rondônia, do Amazonas ao Pará.
Graças ao dinamismo de suas pequenas unidades de produção, o Vietnã socialista se tornou o segundo produtor mundial de café, à frente da Colômbia.
Resilientes, os pequenos produtores sobreviveram ao leninismo, estalinismo, maoísmo, capitalismo e outros “ismos”. Na Amazônia, eles são exemplos humildes de resistência, (re)existência, apesar da demonização Urbi et Orbi de seus meios de sobrevida. Produzem o que comem. Não serão extintos.