Marcação de bovinos e equinos a ferro e fogo deveria ser abolida do País, visando reduzir o estresse, ao contrário da vacinação, que é necessária para a saúde dos animais. “Ponta de fogo” e “aplicação de cáusticos”, principalmente em cavalos, são condenadas pelo CFMV
Um cenário de estresse para o animal de produção – como bois e vacas – ou para equinos, principalmente os cavalos, impacta diretamente no bem-estar e, consequentemente, na produtividade dos bichos. No primeiro caso, o resultado pode ser a queda na produção de carne e leite, ou seja, menos lucro para o produtor rural.
Em razão disso, na pecuária de leite e de corte, avaliar as práticas de manejo em uma fazenda é uma atitude importante para garantir qualidade de vida ao animal e ainda evitar prejuízos, conforme explica o pesquisador Alexandre Rossetto Garcia, da Unidade Pecuária Sudeste (SP) da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Médico veterinário e doutor em Reprodução Animal, ele salienta que o bem-estar envolve um amplo conceito, dependendo principalmente do entendimento de estresse.
“O que é o estresse? É uma condição em que o animal manifesta alterações biológicas ou comportamentais em função de um estímulo negativo recebido”, explica Garcia.
Um estímulo do ambiente, por exemplo, é a exposição ao calor intenso ou do ambiente de produção, como privação à água ou acesso à água de má qualidade.
Ainda envolve períodos longos de restrição de alimentos ou procedimentos de manejo (transporte, formações de novos lotes ou desmame). “São elementos que geram estresse, porque causam privação física ou angústia”, resume Garcia.
Vacinar é necessário
Conforme o especialista, algumas situações estressantes são inevitáveis, como é o caso da vacinação do gado – um procedimento necessário para manutenção da saúde do rebanho, além de ser essencial para produção de alimentos seguros e de qualidade.
O pesquisador salienta que práticas mais racionais na rotina, além de reduzirem o estresse, melhoram a produtividade. Por outro lado, quando o animal passa por adversidades, ocorre queda da produção de leite ou do ganho de peso.
“Quanto mais amigável for a relação entre o ser humano e o animal, melhor para os dois”, conta o médico veterinário.
Recomendações
Ele recomenda ao pecuarista algumas medidas básicas, com foco no respeito ao animal, como treinamento dos campeiros em manejo racional; planejamento prévio das atividades em currais, para diminuir ao máximo o tempo em que os bovinos passam nesse ambiente.
Ainda sugere: oferta de dieta balanceada e em quantidade adequada para cada categoria; disponibilização de água de qualidade em bebedouros, que devem ser periodicamente limpos; oferta de sombra nas pastagens e no entorno dos currais para diminuir o estresse calórico.
Avaliação das práticas
Garcia afirma que é fundamental que o pecuarista avalie suas práticas: algumas dependem de investimentos, como melhorar a infraestrutura; e outras precisam apenas de treinamento e disponibilidade de tempo. E um exemplo é a vacinação.
Conforme o pesquisador, geralmente os animais não são contidos individualmente para a aplicação da vacina, atitude que contraria uma boa prática de manejo. Com isso, crescem as chances de acidentes para o operador e para o gado, além de maior incidência de reações vacinais indesejáveis.
“Aquele pouco tempo que o pecuarista economizou, é perdido depois com afastamento de pessoal, tratamento de abscessos nos bovinos, sem contar os gastos com medicação e rejeição de partes da carcaça no frigorífico”, explica.
Manejo nutricional e sanitário
De acordo com Garcia, o bem-estar também depende de um bom manejo nutricional e sanitário. “A falta de qualidade do alimento ou sua restrição causam uma série de problemas.”
Além da perda de peso, acrescenta o especialista, a privação nutricional pode ocasionar irregularidades ou supressão do cio e abortamentos, aumentando o estresse do animal e reduzindo os ganhos do pecuarista.
“Quando há adoecimentos com frequência é sinal de erros de manejo sanitário. No caso das vacas leiteiras, por exemplo, a higiene precária na ordenha causa mastite, gera acidez e favorece a presença de microrganismos no leite, reduzindo a qualidade do produto e aumentando seu descarte.”
Marcação a fogo
Na visão do pesquisador, outra prática que deveria ser abolida é a marcação a fogo (ferro quente) para identificar o animal, feita na perna, abaixo do ventre, ou na face, para não danificar a pele.
“É um processo muito doloroso e, além disso, quando a marca é feita fora dos lugares indicados desvaloriza ou até mesmo inutiliza o couro para a comercialização, causando enormes prejuízos aos criadores.”
Para ele, hoje em dia existem mecanismos eletrônicos muito eficientes para identificação e controle. “Precisamos usar a tecnologia a nosso favor e para conferir bem-estar ao animal”, defende Garcia.
A marcação do gado a ferro e fogo ainda é muito usada por pecuaristas brasileiros e exigida pelo governo federal para identificar a vacinação contra a brucelose. Outros países, como Canadá e Nova Zelândia (uma potência mundial no que diz respeito às tecnologias empregadas à pecuária de leite), substituíram essa prática por outras formas de identificação.
Em 2017, o professor de Etologia e zootecnista Mateus Paranhos da Costa, do Departamento de Zootecnia da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias, vinculada à Universidade Estadual Paulista (Unesp – Jaboticabal), enviou uma carta aberta ao então ministro da Agricultura, Blairo Maggi, pedindo, pelo menos, a proibição da ferra na face do animais, por ser uma área muito mais sensível que outras partes do corpo.
Livro gratuito
Em novembro do ano passado, foi lançada a versão digital em português do livro “O Bem-Estar Animal no Brasil e na Alemanha: Responsabilidade e Sensibilidade”, uma obra bilíngue da Câmara Brasil-Alemanha.
A parte brasileira foi editada pelo professor Mateus Paranhos, que também é coordenador do Grupo Etco. Para fazer o download gratuito, acesse o site grupoetco.org.br.
O livro também foi editado pela pecuarista Carmen Perez, da Fazenda Orvalho das Flores de Araguaiana (MT), além de Jörg Hartung, do Institute of Animal Hygiene, Animal Welfare and Farm Animal Behaviour (TiHO), Hannover, responsável pelo conteúdo alemão.
A obra contou com o apoio jornalístico de Flávia Tonin, que fez a edição e contou os casos de sucesso no Brasil.
Equinos
Após um parecer técnico, o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) sugere que sejam proibidas as práticas conhecidas como “ponta de fogo” e “aplicação de cáusticos” em equinos, especialmente nos hipódromos brasileiros, seguindo as recomendações dos órgãos reguladores internacionais, como a Federação Internacional de Autoridades Hípicas (IFHA, sigla em inglês), a Federação Equestre Internacional (FEI) e a Organização Mundial da Saúde Animal (OIE).
De acordo com o CFMV, as duas práticas consistem em cauterizações, especialmente para inflamações ósseas. Enquanto a ponta de fogo usa ferro quente, a aplicação de cáusticos consiste na administração de substâncias químicas nas patas e cascos dos cavalos.
Conforme o Conselho, por serem consideradas práticas ultrapassadas, que provocam dor prolongada e sofrimento nos animais, a orientação é que os profissionais utilizem práticas mais atualizadas, respeitando o bem-estar animal, assim como estabelece a Resolução CFMV nº 1.236/2018, de forma a preservar mercados e dar credibilidade à atividade no País.
Em comunicado à imprensa, a instituição diz que “o parecer técnico ainda justifica que o Código de Ética do Médico Veterinário estabelece, como princípios fundamentais, para o exercício profissional ‘empenhar-se para melhorar as condições de bem-estar, saúde animal, humana, ambiental e os padrões de serviços médicos-veterinários’ e ‘usar procedimentos humanitários preservando o bem-estar animal evitando sofrimento e dor’”.
Com essa iniciativa, o Conselho visa estimular que os órgãos brasileiros normatizem o fim dessas práticas e inicie o debate sobre a regulamentação pelo próprio Sistema CFMV/CRMV’s, voltada ao exercício profissional.