Um terço da população mundial poderia ser alimentada apenas com o volume global de perdas e desperdício de alimentos. Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Alimentação e Agricultura (FAO), o volume é estimado em um terço da produção mundial de alimentos, atingindo valores da ordem de 1,3 bilhões de toneladas por ano. Isso seria suficiente para alimentar 2 bilhões de pessoas.
As toneladas de alimentos perdidas ou danificadas tem implicações severas sobre a segurança alimentar e causam prejuízos econômicos e ambientais. Naturalmente, esta questão exige uma atenção urgente. No Brasil não é diferente: 27 milhões de toneladas de alimentos são desperdiçadas em média a cada ano, levando em conta toda a cadeia alimentar.
Transporte lidera perdas e desperdício de alimentos no Brasil
Segundo análise da ONG Banco de Alimentos, com base em dados da Embrapa, o desperdício de um terço de alimentos que ocorre em toda a cadeia alimentar tem a seguinte origem:
- 10% no campo;
- 50% no manuseio e transporte;
- 30% nas centrais de abastecimento;
- 10% nos supermercados e consumidores.
Coordenadora do Curso de Engenharia de Alimentos do Instituto Mauá de Tecnologia (IMT), Eliana Paula Ribeiro lembra que a população mundial atualmente é de cerca de 7,5 bilhões de pessoas e deve atingir 10 bilhões até 2050. Segundo a ONU, 800 milhões de pessoas passam fome no mundo e, até 2050, a produção de alimentos deve crescer em pelo menos 69% para alimentar a população prevista.
“Faz parte da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU a meta 12.3 de até 2030 reduzir pela metade o desperdício de alimentos per capita mundial, nos níveis de varejo e do consumidor, e reduzir as perdas de alimentos ao longo das cadeias de produção e abastecimento, incluindo as perdas pós-colheita”, afirma a especialista.
Diferença entre perda e desperdício de alimentos
É importante ressaltar que por perdas entende-se a redução da quantidade disponível de alimentos para o consumo humano nas fases de produção, pós-colheita, armazenamento, abastecimento e transporte, enquanto o desperdício é resultante do descarte de alimentos que ainda têm valor comestível.
“As perdas e desperdícios, além de reduzir a quantidade de alimentos, apresentam impactos financeiros, uma vez que geram menores recursos para os produtores e aumentam os preços para os consumidores, e resultam em desperdício dos recursos naturais utilizados na produção como, por exemplo, água, energia, insumos e trabalho”, afirma Eliana.
Em toda a cadeia de produção de alimentos existem formas de evitar as perdas e os desperdícios, principalmente por meio de investimentos em pesquisa, melhoria de processos e de infraestrutura, educação e conscientização do consumidor. Para erradicar a fome se faz necessário que todos os setores da sociedade participem e façam esforços para reduzir as perdas e desperdícios de alimentos.
Desperdício de alimentos é maior logo após a colheita
Antes mesmo que os alimentos cheguem aos pontos de venda e comercialização, já se registra um enorme desperdício no Brasil. No caso dos grãos, o livro “Perdas em transporte e armazenagem de grãos: panorama atual e perspectivas”, lançado pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), no ano passado, faz um compilado de artigos com dados que demonstram o grande desafio do agro em reduzir suas perdas pós -colheita, na armazenagem e no transporte.
Segundo a publicação, do total das perdas de grãos no país em 2015, por volta de 45,53% ocorreram na atividade logística de armazenagem; 21,67% no transporte rodoviário da fazenda ao armazém; 13,31% no transporte rodoviário; 1,62% no transporte multimodal hidroviário; 8,24% no transporte multimodal ferroviário; por fim, 9,04% no porto.
Baixa capacidade de armazenagem multiplica desperdício de alimentos
Em um dos artigos, o Professor de Engenharia de Pós-Colheita de Produtos Agrícolas na Universidade Federal da Grande Dourados, André Goneli, chama a atenção para o grande déficit de armazenamento de grãos no Brasil, tanto em termos de qualidade dos silos, como de capacidade.
Estima-se que o país possui atualmente uma capacidade estática de armazenagem de, aproximadamente, 167 milhões de toneladas de grãos. Considerando a produção de grãos na safra 2020/2021 de, aproximadamente, 252 milhões de toneladas, tem-se um déficit de armazenagem de 85 milhões de toneladas.
“Se considerar a recomendação da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) de que os países devem ter capacidade estática de armazenagem superior em 20%, em relação ao seu quantitativo de produção de grãos, o Brasil deveria ter capacidade estática de, aproximadamente, 301 milhões de toneladas, o que elevaria o déficit de armazenagem para 134 milhões de toneladas de grãos”, pontua o especialista.
Além da capacidade, Goneli destaca que mesmo a armazenagem existente está distante da fazenda, o que contribui para problemas logísticos que levam a perda de grãos.
“No Brasil, apenas 15% da capacidade estática de armazenagem encontra-se instalada em nível de fazenda, favorecendo uma excessiva movimentação de produtos em picos de safras, longas filas de caminhões em unidades armazenadoras na mesma época, armazenamento a céu aberto ou em condições inadequadas, operações pós-colheitas realizadas em ritmo acelerado, dificuldade de planejamento de safras subsequentes, etc”.
Problemas de armazenagem causam dor de cabeça no Brasil
Após a recepção em unidades armazenadoras, os grãos ainda podem sofrer perdas, sinaliza Goneli.
“Possíveis perdas ocorridas durante o período de pré-armazenagem poderão ser acentuadas durante o período de processamento e armazenamento, nos casos em que esses processos também sejam efetuados de forma inadequada”.
O especialista cita problemas como má regulagem das máquinas de pré-limpeza e beneficiamento, manejo inadequado dos processos de secagem, além de problemas relacionados à estrutura física de silos e graneleiros.
Outros fatores, como presenças de impurezas e contaminação das estruturas de armazenagem, variações na temperatura e umidade relativa do ar, podem em maior ou menor intensidade, influenciar os principais processos a que os grãos estão sujeitos durante o armazenamento: proliferação de insetos, pragas e microrganismos, em especial os fungos, resultando em mais perdas.
Dentre alguns mecanismos disponíveis que o professor enumera para a mitigação das perdas quantitativas e qualitativas de grãos, estão:
- Legislações que versam sobre o tema, como a Instrução normativa sobre a certificação de unidades armazenadoras,
- Práticas de rastreabilidade do produto desde a chegada na unidade armazenadora até sua expedição;
- Promover uma pré-limpeza mais eficiente, objetivando a completa eliminação de impurezas que possam ser direcionadas aos secadores e silos ou aos graneleiros;
- Utilização de máquinas e equipamentos que tenham maior eficiência durante o beneficiamento;
- Eficiente controle de insetos pragas e fungos;
- Sistemas que possam promover o controle do teor de água dos grãos durante o armazenamento.
Estradas em mau estado: potencializador do desperdício de alimentos no transporte
Outro grande fator para as perdas de grãos no país é a má conservação das estradas e rodovias brasileiras. Atualmente, o modo rodoviário é a principal via de escoamento da soja e do milho no Brasil, respondendo por 85%. As ferrovias participam com 11% e o sistema aquaviário com 4%.
No artigo “Perdas no transporte rodoviário de grãos”, pesquisadores apontam que o estado de conservação das estradas se constitui em um grave problema a ser resolvido. Segundo eles, 88% dos profissionais rodoviários entrevistados afirmaram que a falta de conservação das estradas é o fator predominante para a perda de grãos.
O estudo concluiu que as perdas por quilômetro no transporte de grãos são de 7,6 g/km para o milho, 360 g/km para o trigo e de 225 g/km para o arroz em casca. Já as perdas por tonelada transportada de grãos são de 1,02 kg/t para o milho, 1,7 kg/t para o trigo e de 1,29 kg/t para o arroz em casca.
“O cenário atual indica a necessidade de investimentos não apenas em melhorias de infraestrutura logística existente, mas também de implantação de novas rotas de escoamento, com a integração dos modos rodoviários, ferroviários e hidroviários”, diz a assessora técnica Elisangela Pereira Lopes, da Comissão Nacional de Infraestrutura e Logística da Confederação Nacional da Agricultura (CNA).
Em seu artigo “Logística de escoamento dos produtos agropecuários no Brasil: estrangulamentos dos fluxos de exportação”, presente na publicação da Conab, Elisangela destaca algumas recomendações da CNA para reduzir a dependência do transporte rodoviário.
“A implantação de programas de recuperação e melhoria das rotas e escoamento da produção; adoção de modelos de concessão em rodovias que garantam menor valor de tarifa; manutenção dos princípios básicos de livre mercado no novo marco regulatório do Transporte Rodoviário de Cargas (TRC), priorizando a livre negociação e vedando o tabelamento de fretes rodoviários”.
Iniciativa bem-sucedida já evitou o descarte de mais de 150 toneladas de alimentos
Todos os dias são descartados, mesmo estando em perfeitas condições de consumo, alimentos com pequenas imperfeições, próximos da data de validade ou que não foram consumidos ao longo do dia, o que gera danos ao meio ambiente e prejuízo financeiro ao varejo alimentício.
Diversas iniciativas vêm tentando mudar esse cenário de desperdício. Uma delas é a Food To Save, uma startup de tecnologia de alimentos, ou foodtech, que atua na área de sustentabilidade. A empresa é pioneira no setor e, desde sua recente fundação, já evitou o descarte de mais de 150 toneladas de alimentos na capital paulista, no Grande ABC e em Campinas (SP).
Com o início da operação em maio de 2021, a startup conquistou importantes parceiros na luta contra o desperdício de alimentos como restaurantes, padarias, hortifrutis e confeitarias. Entre as marcas estão Rei do Mate, Dengo Chocolates, Pizza Hut, Duckbill e a tradicional padaria paulistana Bella Paulista.
Funciona assim: o estabelecimento seleciona os itens excedentes para montagem da chamada “Sacola Surpresa”, e disponibiliza o resgate desses produtos para os consumidores em uma plataforma digital, com até 70% de desconto. É possível acessar a plataforma via aplicativo (disponível para IOS e Android), buscando por Food To Save.
Em menos de um ano de operação, a startup já movimentou mais de R$1,8 milhão e gerou mais de R$1 milhão em receita incremental aos estabelecimentos parceiros, conquistando números expressivos e se consolidando cada vez mais como líder de mercado dentro do seu segmento.
“A Food To Save busca, diariamente, levar hábitos mais sustentáveis para a sociedade e a ajudar o meio ambiente e os estabelecimentos do setor alimentício a sanar uma dor tão comum entre as mesmas e que pode angariar enormes prejuízos ao estabelecimentos, que é o desperdício de alimentos”, detalha Lucas Infante, CEO da empresa.
Investimento bilionário para salvar toneladas de alimentos
A foodtech iniciou o ano ultrapassando 200 mil downloads do aplicativo, fechando parceria com mais de 500 estabelecimentos nas regiões onde opera, o que representa mais de 80 mil pedidos no aplicativo, além de ter evitado a emissão 250 toneladas de CO2, impactando positivamente ao meio ambiente.
Até 2022, a empresa levantou R$1.305.000,00 com aporte de 211 investidores, por meio da CapTable, maior plataforma de investimentos em startups do Brasil.
“Com um modelo de negócio triple-win e com a sigla ESG em nosso DNA, geramos valor em todas as métricas da agenda. Nós comercializamos estes excedentes de produção por meio de nossas sacolas surpresa, que são classificadas entre doces, salgadas ou mistas de acordo com o estabelecimento cadastrado. Neste modelo, o objetivo principal é facilitar o operacional dos parceiros cadastrados e gerar uma experiência simples e divertida para os usuários”, explica Murilo Ambrogi, um dos sócios da Food To Save.
Fontes: Instituto Mauá de Tecnologia (IMT), Food To Save, CapTable, Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Confederação Nacional da Agricultura (CNA) e ONG Banco de Alimentos